Nasci num país livre, numa família bem estruturada, com acesso a informação e com voz própria. Em casa, nunca senti que por ser mulher, tivesse menos oportunidades. Sempre existiu espaço para opiniões distintas, partilha e troca de ideias. A leitura para mim sempre foi um hobby, algo lúdico e/ou de aprendizagem, sem obrigações ou cargas dramáticas associadas, em que as escolhas eram feitas por mim e com total de liberdade, sem nunca ninguém me proibir um determinado livro ou tema. No entanto, hoje, à luz da informação e de ser adulta, estou ciente de que muitas mulheres, pelos tempos e espaços que ocuparam, não eram (e algumas continuam mesmo a não ser!) livres das mesmas escolhas e isso, mostra-me o quão privilegiada sou ou…somos.
Comecei 2021 com o objetivo de retomar os hábitos de leitura, como referi num artigo anterior. Gosto de livros que estimulem a criatividade e que me ajudem a sair da bolha de conforto, dos temas que ficam dentro das minhas preferências ou com os quais estou familiarizada.
Em adolescente, passava horas a ler e recordo-me de, por algumas vezes, uma das minhas tias-avós, a mais especial de todas, ficar muito curiosa em relação aos temas das minhas leituras. Lembro-me de não compreender e de sentir a curiosidade altamente intrusiva e descabida. Eventualmente, era. Mas hoje, analisando o background em que cresceu, penso que consigo compreender o porquê da sua curiosidade.
O livro que me trouxe à memória tudo isto e me fez refletir sobre os livros e os diferentes papéis da literatura na mulher e nas gerações, foi A Vida Secreta das Viúvas Panjabi, de Balli Kaur Jaswal. Um livro leve, divertido e bem escrito. O livro fala de Nikki, uma jovem indiana, residente em Londres, que abandona as conservadoras tradições familiares e vai trabalhar num Pub londrino, entretanto, encontra um part-time e começa a dar aulas de escrita criativa a viúvas. Até aqui tudo absolutamente normal. A diferença começa nos temas escolhidos pelas viúvas para abordar: contos eróticos! Basicamente as viúvas, através da ficção e da escrita destes contos apaixonantes, libertaram-se das amarras da sociedade, das convenções por elas mesmas impostas e das opiniões alheias. As sessões de escrita passaram a ser uma espécie de terapia de grupo em que se sanaram feridas antigas e se mudaram mentalidades.
As mulheres retratadas no livro, apesar de viverem em Londres, estão presas às convenções de uma sociedade machista e patriarcal, em que à mulher é-lhe negada a vida após a morte dos maridos. Estas mulheres, que encontraram no papel e na caneta, uma nova vida, começaram por criar através da escrita, a narrativa que gostariam de ter vivido, as emoções que gostariam de ter sentido e que, na maioria dos casos lhes foi negada pela família, pela sociedade ou por elas mesmas, ao não conseguirem impor as suas vontades.
É curioso perceber como as diferentes gerações adotam formas de estar distintas, face às mesmas problemáticas. Tanto no livro, como na vida real, enquanto as gerações mais jovens tem a liberdade (ou a irreverência?) de colocar os seus sonhos e aspirações em prática, as gerações mais velhas, nas mesmas situações, pela força das convenções e da sociedade, resignam-se o melhor que conseguem e encontram estratégias para (sobre)viver, apesar das dificuldades. E é aí que o livro e/ou a ficção se torna algo tão representativo das profundas diferenças entre gerações.
Enquanto nós, livres, independentes, cheias de privilégios e de responsabilidades, lemos porque podemos e queremos. Somos do viver e, acima de tudo, do fazer. Estas mulheres – as do livro ou mesmo as tias-avós de muitas de nós, encontram na ficção o veículo para a emoção que lhes falta, dão uma vida muito própria e pessoal a cada personagem, quase como se vivessem através delas. Romances incríveis, que apenas existem nos livros, viagens fantásticas e acontecimentos mirabolantes, que as fazem suspirar como se fossem totalmente reais. Encontram nos livros a liberdade e a emoção, que a sociedade ou as convenções de uma época, lhes negaram.
Elas dizem sempre que antigamente é que era, mas, no sentir, seremos assim tão diferentes?