A adversidade revela o génio, a prosperidade o esconde.
– Horácio
Há assuntos que, pela forma como nos tocam, pela força como nos são familiares, pela realidade com que são similares à nossa, e pela angústia com que nos provocam emoções, são difíceis de abordar.
O tema deste artigo é assédio sexual e não só.
Pela lei, a apresentação de queixa/denúncia desta prática de violência e abuso, prescreve ao fim de seis meses, permitindo ao agressor continuar no seu márga (caminho) de acordo com as suas vontades, ilibando-o naturalmente sem qualquer pudor.
As vítimas de assédio são, na sua maioria, mulheres. Quando assumes e aceitas que esta também é a tua história, todo o mundo balança e, muitas vezes, são as mulheres que te rodeiam a condenar-te impunemente. Eu sei que assim é.
“Alguém disse que tudo no mundo é sobre sexo, excepto sexo, e que sexo é sobre poder… Estamos sempre a falar de poder e de humilhação, de um patriarcado que deve ser destronado e da humilhação a que tem submetido as mulheres. A solução para este problema não deverá ser apenas uma vingança, a da tomada do poder e a devolução da humilhação.”
Dizer em VOZ ALTA é libertador, mas, muito difícil também. Na sua maioria, o abusador é aquele que tem um vínculo, uma ligação para com a vítima, que o entende como alguém de confiança e o vê, muitas vezes, como exemplo de pessoa a seguir. As conexões enérgicas que se criam em egrégoras, que têm por base uma filosofia assente em práticas ancestrais (orientais), como o Yôga, – é baseada em guptá vidya – conhecimento secreto. Sendo passado de mestre a discípulo e, só aqueles que escolhem seguir esse caminho o podem entender. De outra forma, será sempre algo complexo de explicar objectivamente.
Krishnamurti fala sobre a corrupção como algo próprio do ego, aliado à ingenuidade ou consciência do acto, por incapacidade de se manter íntegro e fiel à humildade, que deveria ser inacta à condição humana. Será que corrupto pode ser o termo aqui integrado? Não ser corrupto, aquele ou aquela que se aproveita de algo em prol duma necessidade sua, dum proveito seu, dum desejo físico que tem de “alimentar” só porque sim?
Karma De acordo com o modo como o homem age e percorre o caminho da vida, assim se torna. Aquele que faz o bem, torna-se bom; o que faz o mal, torna-se mau. Por meio de acções puras, torna-se puro; por meio de acções perversas, torna-se perverso. Diz-se, com verdade, que um homem é feito de desejo. Assim como é o seu desejo, assim é também a sua fé.
– Upanishades, pág. 111
Assistir ao documentário/filme sobre Bikram Choudhury, o Guru, “criador” de Bikram Yôga, acusado nos Estados Unidos de assediar e violar alunas e enfrentar processos de alegados casos de agressão, racismo e homofobia, recorda o tanto que temos ainda para trilhar para sermos uma sociedade em evolução e humanizada. E, também que este, é apenas um rosto de entre tantos rostos, que manipulam e intimidam, camuflados atrás das suas filosofias, conhecimentos, técnicas e elocução. Retórica que apenas serve para coagir e submeter as fragilidades de outros aos seus caprichos, desejos e vontades.
Satya é verdade, em sânscrito. E Yôga é união (a raíz desta palavra encontra-se, apenas alterada, no latim jungere e seus derivados(…) Yôga deriva da raiz sânscrita yudj, unir, à qual se acrescenta o sufixo ghan, que indica perfeição)*
Glossário de Bhagavad-Guitá, pág. 372
Este artigo é apenas uma vírgula, de entre todas as histórias de humilhação, vergonha, assédio, desrespeito e violação, de chamados mestres para com os seus discípulos (feminino) e, a relação incestuosa criada através das práticas “tântricas” que as permitem pôr em prática, como se diminuíssem o abuso que de facto é.
Aquele que vê a variedade e não a unidade vagueia de morte em morte.
– Upanishades
Não podendo este artigo ser descritivo do que é o Yôga, das múltiplas escolas que se ramificaram e dos muitos discípulos que se afastaram do aprendizado inicial – motivo resultante de interesses próprios, desvirtuando por completo o conceito original desta filosofia ancestral. Ou, pelas razões aqui abordadas. Ainda assim, se refere que “Yôga consiste em reduzir a mente ao silêncio e em manter-se sem pensar.” (Yôga-Shastra) “o silêncio das actividades mentais, que conduz à realização completa da natureza da Personalidade Suprema, chama-se Yôga.” (Yôga-Sára-Sangraha), cit. Por Alain Daniélou, in Yoga, méthode de réintégration, pág. 16
Bikram Yôga nem sequer é algo parecido com Hatha-Yôga, como referido no glossário de Bhagávad-Guitá, António Barahona “que nada tem a ver com aquilo que é apresentado sob o mesmo nome (ou só Yoga) no painel televisivo, nas tabuletas, na publicidade ou na literatura de cordel. O apetite insaciável do Ocidente transformou o Hatha-Yôga, adulterando-o e integrando-o (…) em cursos de ginástica, dança e teatro.”

Posturas Físicas – Ásanas
Consiste numa série de ásanas (posturas físicas) já existentes, incluindo um pranáyama (exercício respiratório), em que o próprio denominou com o seu nome, para um “tipo de prática” que se pretendia comercializar, ao bom grado dos americanos. Com a duração de 90’, realizada numa sala com temperaturas acima de 40 graus.
Um absurdo aos olhos de quem está de fora. Porém, algo que muitos pagaram para ter acesso.
Para este discurso convém entender alguns termos específicos: mestre, discípulo, egrégora e gupta vidyá.
Segundo os Shástras tradicionalmente, o Mestre é para o discípulo, pai, mãe e Íshwara (que significa Senhor, num certo sentido é a divindade eleita para o culto particular).
No Kularnava Tantra, é referido o discípulo como alguém dotado de determinadas qualidades:
“O discípulo escolhido deve estar dotado de(…) boas qualidades. (…) Deve ser alguém digno de confiança; (…) não intoxicado (por drogas); (…) serviçal; (…) não dado a atacar os outros; (…) com aversão a ouvir louvores a si próprio, porém genial com as críticas; (…) deve ser alguém que fale do Guru; (…) sempre na proximidade ao Guru; agradável ao Guru; constantemente ocupado em seu serviço, com mente, palavras e corpo; que cumpre as ordens do Guru; que difunde as glórias do Guru; conhecedor da autoridade da palavra do Guru; (…) que segue as intenções do Guru; que actua como um servidor do Guru; sem orgulho de classe social, honra ou riqueza na presença do Guru; que não cobiça os bens do Guru.”
Guptá vidyá é conhecimento secreto, lendo-se na Maitrí Upanishad, sobre o ensino do Yôga: “esta ciência absolutamente secreta só deve ser ensinada a um filho ou a um discípulo totalmente devoto ao seu Mestre.”
Com estes aspectos em conta, se aceita que Bikram não era um verdadeiro mestre. Mas, apenas um homem igual entre tantos outros, com a vantagem dos seus alunos o elevarem ao grau de guru e lhes terem depositado toda a confiança que se tem a um pai, um protector.
Se este fosse apenas um só homem, poder-se-ia reflectir sobre o eterno romantismo das mulheres, subservientes de longas gerações do patriarcado, condicionamento da ingenuidade que lhes é própria. E, duma sociedade que vai continuar a ser patriarcal e falocrática, muito em conta, porque as próprias mulheres assim o permitem.
Resta apenas apontar e alertar para situações idênticas em Portugal. Algumas que ainda decorrem nas instâncias dos tribunais, como o caso do fundador da Confederação Portuguesa e Europeia de Yôga. E, outros, escondidos nas tramas dos seus próprios ócios, nunca expostos como deveriam ter sido, mas cuja egrégora que lhes alimentava o ego, foram destruídas por factos idênticos, ocorridos.
Uma nota essencial. Yôga é uma das mais profundas filosofias que conheço, baseada em técnicas de purificação do corpo e mente para ascensão do Ser. Aquele ou aquela que se afasta porque foi submetido a violências, como as que são descritas neste documentário, para se libertar do abuso, apenas está a garantir o desaparecimento desta e, não a apontar uma falha que é de um homem só. E, significa também que não aprendeu nada.
Penso sempre que poderia ter sido eu. Que não sendo, é como se tivesse sido também.
Fui praticante de SwáSthya Yôga durante cerca de quatro anos. Sistematização do Yôga mais Antigo e, continuo a considerá-lo a melhor filosofia para aqueles que pretendem potenciar o seu desenvolvimento físico, mental e emocional.
Poderia ter sido eu. Mas, não fui. Ainda assim, é como se tivesse sido.
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Excelente artigo que revela uma forte componente de pesquisa e conhecimento do assunto bem como é precisa enorme coragem para escrever e pôr a nu estes temas mais delicados na nossa sociedade ainda muito machista. Bem hajas e parabéns Carmen!
Olá, Ana!
Agradeço as tuas palavras, que recebo com o carinho com que as deixas.
É preciso coragem para fazer uso da nossa própria voz, sempre!
Quem escreve sabe disso. Tu também tens a tua voz e vais partilhando, com a coragem dum leão, nos teus poemas muito pessoais.
Continua a fazê-lo e continua a ler o RS, na qualidade literárias dos seus autores.
Beijo de luz! 🙂
Obrigada também pelas tuas palavras. Um beijo de luz!