Pequenina, vestida de negro, qual corvo que se movimenta em terra, rodopiava na estação dos barcos. Cabelo muito grisalho, talvez o tempo da neve não a considerasse digna, amarrado num carrapito, magra, de meias pretas e lenço pelos ombros, apregoava num tom suave, de quem não tem experiência, mas expediente para se desembaraçar. “É a pila pró rato”. Chamou-me a atenção. Tão magrinha e tão enrugada! Que dor de alma ver uma velhinha, tão miserável, a esforçar-se para ainda ser útil. Eram tempos ainda sem telemóveis e os rádios pequenos e os leitores de cassetes, os walkmans, estavam na voga. Precisavam de pilhas clássicas, as que se babam quando acabam e estragavam os aparelhos. A tecnologia ainda estava na adolescência, cheia ade pujança, mas sem grande sucesso.
Aquela frase, pronunciada em tom monocórdico e sem fonética precisa (talvez devido à falta de dentes e dos vocábulos exactos), mostrava quem a emitia. Óculos já muito “démodé” (hoje seriam vintage), um enorme bigode e uma verruga gigantesca, também ela peluda, atraíam logo os olhares. Deambulava entre os portões e o portaló para os barcos. O pregão era o mesmo, sem sofrer alterações. Foi a primeira vez que a vi. Tocou-me. Que idade teria? Impossível dizer. Gasta pela vida, ansiosa e angustiada, continuava o seu percurso. Andava e andava sem um momento de paragem. Havia cadeiras, convidativas e um telheiro, mas ela acompanhava as pessoas desde que entravam no recinto até ao seu desaparecimento. Eram aos magotes, chegavam por revoadas, apressadas, para atravessarem o rio e se recolherem aos seus lares onde alguém os esperava, com braços e beijos sentidos. Ela caminhava, uma pequena mancha negra, um animalzinho que rastejava e suplicava que a ajudassem.
“É a pila pó rato” repetia e ninguém a ouvia. Era a hora da grande azáfama, do regresso a casa e ela tornava-se invisível, tal como todos os outros que se acotovelavam para garantir o seu lugar no barco que chegava e partiria de seguida. Seria só eu que a via? Que lhe sentia a alma e a dor tão grande que emanava num corpo tão pequeno, tão mirrado, tão triste e tão desesperado? Levei-a comigo para a outra margem, junto aos meus pensamentos e preparativos do jantar. Que curioso aquela personagem me ter tocado tão fundo e tão forte. Como seria a sua vida? Onde viveria? Até que horas ficaria ali? Era de noite. Talvez morasse num quarto bolorento ou numa casa térrea, sem condições, sem água nem luz natural. O mais provável seria ainda pior, dormia na rua, num canto qualquer, numa paragem de autocarro, sozinha, abandonada de si e por todos. Confesso que não conseguia deixar de pensar nela.
No dia seguinte, quando saí do barco, na direcção oposta, olhei, mas não a vi. Era cedo e não havia gente suficiente que justificasse a sua venda. Fui empurrada, no rebanho dos apressados e ansiosos por chegar ao trabalho e quase nem me percebi duma sombra colada ao portão. Era ela. Teria dormido? Já teria voltado? Não estava a promover o seu material, mas estava ali, provavelmente à espera de caçar um interessado. Regressei mais cedo e ela estava a falar com o Licas das flores. O Licas fazia parte da fauna da Baixa. Nasceu homem, mas nunca se adaptou ao corpo. Foi crescendo, cheio de tiques e trejeitos que faziam os outros rir. A ele não. Sofria com a intolerância. Pintava as unhas e aparava as sobrancelhas. Tinham-no logo intitulado de bicha. Usava sempre calças muito claras e justas e camisolas ou camisas, com decotes generosos, para se ver bem o seu peito, aquele que ele desejava ter, recheado de uns seios opulentos, atractivos e apetitosos. Um desejo que não poderia nunca concretizar. Ele, no seu tom de falsete, dava-lhe conselhos, dicas muito preciosas para ter sucesso no negócio. ” Filhinha tens de tocar nas pessoas. Elas têm de te ver. Mostras as pilhas na mão. Vês? ” E exemplificava porque a prática conduz à perfeição. Olha olhava para ele, de cabeça levantada e olhos de agradecimento. Era uma imagem enternecedora: ele alto e espampanante e ela, pequena, velhinha e apagada. Uma protecção improvável, mas que tive oportunidade de presenciar.
Assim foi. A vida continuava, ao seu ritmo sequencial e os barcos, as pessoas e as pressas eram o quotidiano daquele local. Quando regressava procurei-a com o olhar. Apesar de minúscula via-a logo. Mas o que chamou mais a atenção foi a voz do Licas, num sustenido de fífias, que obrigava a ser notado: ” Ó lindas, olha a bela flor, olha a flor! E a tia tem pilhas! ” Olhei melhor. Enquanto ele levantava o ramalhete e se tornava visível, ouvia-se aquela vózinha surda e pequena, ” É a pila pó rato! ” E os dedinhos com as pilhas, muito apertados, no alto. E naquele dia houve quem comprasse as pilhas e quem reparasse na senhora. Não sei porquê, mas senti-me mais tranquila. Tinha quem olhasse por ela, um anjo que lhe colocava uma espécie de capa protectora e a tirava da sua invisibilidade.
Mas que estranha forma de vida!