Que destino tão infantil e sádico, qual criança na sua tão própria crueldade permitida pela inocência da idade. Estará tão só a ser irredutível perante os apelos dos homens que dançam no limbo? Estão eles a lutar na natureza do mar bravo, nas montanhas de espuma em permanente reboliço, nas águas que deviam ser um lar aos que dela tiram sustento. Sustento dado mas por vezes cobrado com a mais infame de todas as derrotas da vida, a vida que as águas reivindicam.
A embarcação rola violência no topo de cada onda antes de mergulhar no abismo que é a espera pela próxima vaga. Mais intensa ou esperançosa não interessa porque a mente dos homens foca-se unicamente em quem ficou em terra. É suposto voltarem para eles e não deixarem de amar assim de forma tão abrupta. No topo de mais uma torre sineira, os homens avistam a costa e os sinos badalam as reservas de forças que julgavam já não ter. Seguraram-se à amurada com toda a paixão de sobreviver que conseguiram respirar. Uma onda certa atiraria-os para um areal incógnito que os poderia proteger de mais sopros de um adamastor longe de casa.
Em toda aquela costa, seculares arribas encimavam longos leitos desejados de fina areia dourada, verdadeiro tesouro deixado pela natureza para ensinar a sua beleza. Algumas rochas entravam mar adentro como se um cais não moldado fossem. Eram sentinelas armadas com ameaçadoras escarpas afiadas. Delas seria fácil fugir por o mar delas se acobardar atrasando a sua erosão e mantendo-as de pé. Habituado estava o mar a entregar os despojos das suas batalhas nas praias que os homens ansiavam, nunca em tais sentinelas.
Naquela costa havia uma pequena enseada que o mar temia. Dizia-se ser a praia de monstros e por tal a natureza cuidou de a manter inacessível e inabitável. Era uma pequena praia de onde não era possível ver outro pedaço do planeta que não o oceano diante de si, e altas arribas em volta. No seu chão não se pisava a areia dourada que convida os homens, apenas um pesado cobertor de frias pedras de seixos revoltosas entre si. Lutavam e desfaziam qualquer indício de uma superfície lisa, tentando fintar as curvas redondas que lhes permitem ser o que são. Ninguém as pisava. Então elas gemiam e oravam ao isolamento enquanto ansiavam vingança.
Vingança que surgiu naquela noite quando os homens do mar viram a última onda que sentiram a atirá-los na direcção daquela inexpressível enseada. O túmulo de metal gemeu ruídos ensurdecedores quando a escassos metros das rochas que o poderiam aniquilar, imobilizou-se esmagando boa parte da população de seixos daquela praia. Os homens foram violentamente atirados para locais indecifráveis ali tão perto. Choraram sangue que se diluiu na aspereza das peles queimadas por feridas infligidas pela tempestade. Após minutos que foram vidas conseguiram içar-se perna ante perna na idade que quase deixaram e choraram os amigos que fraquejaram perante o dócil destino que se irou tão repentinamente. Os amigos que deixaram sem vida agora apenas se viam como uma névoa do que foram. Choraram e a chorar adormeceram os homens exaustos, vítimas do cansaço que os manteve vivos. Lutaram com tudo o que tinham e as forças esgotaram-se. Apenas podiam esperar.
Esperar foi tudo o voltaram a fazer. Uma linha dourada que se queria contínua foi tragicamente perturbada pela vil necessidade de haver um porto de abrigo para o fado cruel daqueles que nunca podem escolher. Maresia constante arremessada nas arribas em frente aos homens que desejaram a salvação pelos seus iguais. Mas o destino fabrica-se a si próprio sem a intervenção de quem o sente acontecer. E o destino gritou a infantilidade e o sadismo quando encaminhou por caprichos a embarcação para aquela esquecida praia de seixos.
Durante dias foram procurados por homens e mulheres, no mar em terra no ar. A vê-los ao longe estava um barco que apodrecia seco após a tempestade, deitado na sua cama de seixos. Quando encontrados os homens já o tarde havia passado. Os homens já o haviam deixado de ser e em névoa haviam-se transformado por entre lágrimas derramadas.
Àquele túmulo hoje visitam os que de memórias vivem. Acorrem ali sós às primeiras horas da manhã quando a névoa ainda é densa e recordam os que partiram sentindo as gotículas de humidade na cara. Ficam à espera que a névoa se dissipe e mostre o barco martirizado pelo ácido marinho que corrói o metal de algo que aos poucos deixa de ser barco, lá em baixo, no fundo da arriba.