
A guia leva as mãos aos olhos, discretamente.
“O meu pai era professor e o meu irmão estava a estudar. Foram levados de casa e nunca mais voltaram. Eu tinha onze anos. Penso neles todos os dias, pergunto-me por eles todos os dias.”
Estão 40 graus de um calor húmido e peganhento, mas aquele lugar é de gelo. O sol é incongruente. O silêncio pesa, principalmente o que sinto dentro de mim, dentro do meu peito derramado. A guia limpa as lágrimas e nós tentamos consolá-la com o olhar. Mas ela é uma ruína e os olhares não reconstroem.
Tuol Sleng ainda guarda nas suas paredes e nos seus tectos gotas de sangue de quem não tem mais voz. O desconforto, o abandono e a solidão colam-se à pele. Um lugar contra-natura. Irmãos a matar irmãos. Uma escola transformada em prisão. A educação como inimigo. Ecos de vozes de crianças abafados pelo som da tortura. Salas de aula transvestidas em celas inumanas. Hoje, é um museu contra o esquecimento. Só existe a homenagem. Porém, eu quero impossibilidades, quero apertar a mão e chorar com quem soube que não voltaria a sair dali, com quem sentiu saudade e revolta, com quem foi torturado e morto.
Seguimos a guia. Os passos são rápidos mas gentis. Parece pedir licença à História para caminhar pelo pretérito, para pisar o mesmo chão que o pai e o irmão provavelmente pisaram, imaginando o medo deles, a esperança. À nossa volta, fotografias observam o futuro que nunca chegaram a conhecer. Olhos assustados, resignados, ferozes, rebeldes, emocionados. Presos e torturadores lado a lado. Homens, mulheres, crianças, todos foram vítimas e carrascos. O resultado do genocídio no Camboja: um quarto da população morta e nenhuma família imune.
“Daqui, o Khmer Rouge enviava os prisioneiros para os Killing Fields. Ainda há lá pessoas enterradas à espera de serem descobertas. Algumas ossadas aparecem depois das chuvas.”
Por entre a tristeza, a esperança. O pai e o irmão podem lá estar, nunca se sabe, nunca se sabe. Feridas abertas. Mesmo assim, ela escolhe caminhar todos os dias à volta da sua dor. A urgência de mostrar às pessoas aquilo de que os humanos são capazes. E de lembrar que podemos ser também mais. Pergunto-me se olha para aquela prisão todos os dias e sente que também ela merece algum tipo de tortura, se é aquilo de que precisa para se sarar e se sentir um pouco mais perto deles, mais perto da possibilidade de os encontrar. Somos capazes de esperar o definitivo para sempre. E, se o definitivo não for suficiente, somos capazes de esperar o impossível.
Aperto a mão dela para me despedir. Os gestos também não nos reconstroem, mas, por vezes, tornam-nos reais e deixam-nos respirar. Ela sorri com agradecimento, a mágoa nas expressões está mais ténue. Aperta os meus dedos de volta e pede: “fala de nós no teu país e volta em breve.” Que é como quem suplica: não esqueças, por favor, não esqueças.
À noite, começa a monção. Pela janela do hotel, vejo o Mekong a vigiar os movimentos da cidade. No passado, o grande rio foi protecção e defesa para o seu povo, foi vida e sepultura, foi testemunha do bem e do mal, da destruição daquela cidade. Hoje, é-o também do seu renascimento. Abro a porta e toco na chuva. Sinto-lhe o cheiro e o calor, o barulho de quem desaba. Estou sozinha num quarto em Phnom Penh, são oito da noite, e choro porque o mundo é feito de melancolia, de força e de amor. Pelo menos, esta noite. Pergunto-me o que trará a chuva tropical. Quem trará.
“Fala de nós no teu país e volta em breve.” Contra o esquecimento e a favor da ressurreição.
Que bela maneira de se contar uma história tão pesada. Obrigada pela lembrança.
Continua a escrever, que eu vou continuar a ler. Obrigada pela sensibilidade e pelas palavras tão bem entrelaçadas.