A loucura silenciosa

Carlos ouviu o grito quando estava no quarto, depois de jantar. Já estava deitado, e assustou-se com o barulho arrepiante. Saiu do quarto.

“Mãe?”

A mãe já estava à porta do quarto do irmão, a chorar.

“Chama alguém! Chama uma ambulância!” gritava-lhe. A cara vermelha e molhada, de lágrimas e ranho e baba e tristeza. A alma a sair-lhe pelo olhar. “Chama alguém!”

Correu para o telefone, e temeu o pior. Mal sabia o número, e enganou-se uma vez antes de conseguir falar com alguém. Via na mãe uma perda, uma perda irremediável, uma dor infernal. Estaria o irmão bem? Ferido? Morto?

Arrepiou-se.

“Por favor” pediu, quando ouviu alguém do outro lado da linha. “Por favor, venham. É o meu irmão. É o meu irmão”.

Mas não era o irmão.

Quando a ambulância chegou, o pai foi declarado morto. O irmão chegou a casa umas horas depois, pela mão dos avós.

Carlos não sabia o que se tinha passado naquele quarto, a mãe não lhe tinha contado e ele também nunca quis saber; era pequeno, mas sabia na pele o quanto a dor destruía. Não se achava no direito de perturbar aquela memória trágica que a mãe era obrigada a guardar.

No dia do funeral, quando retornaram a casa, o irmão sentou-se com ele na cama.

“Matou-se” explicou-lhe.

Carlos olhou para ele, com os olhos muito abertos. Tinha 11 anos, mal sabia o que era a morte, quanto mais alguém tirar a própria vida. O irmão tinha 13, e ele não entendia como é que o irmão sabia.

“Porquê?” lembrou-se de perguntar.

O irmão encolheu os ombros e saiu do quarto.

Agora, quinze anos depois, quantas vezes não lhe vinha essa memória à cabeça!

Naquela noite de verão ainda lhe cheirava a sol, quando se deitou. O cheiro a sol estaria para sempre ligado ao suicídio do pai, à morte da alma que a mãe sofreu, e à solidão em que ele e o irmão começaram a viver. Ele e o irmão tinham crescido sem pai. Sem pai. Só com a morte, só com a mãe, com o silêncio e com a morte.

E, sem saber, com a loucura.

Quando começou a ouvir as aranhas, não se apercebeu de que havia algo de errado com ele. Devia ter uns 18 ou 20 anos, e a única coisa que queria era calar as aranhas. Não contou a ninguém, nem ao irmão. Ouvia as patas rápidas e compridas a tocar suavemente no chão, e por vezes não conseguia dormir com medo de não saber onde estavam as aranhas, e qual era o plano delas.

Depois de uns meses sem descanso, disse à mãe “estou a ouvir aranhas”, como se dissesse que tinha uma pequena borbulha na barriga. A mãe olhou para ele horrorizada, e na semana seguinte ele estava a ser internado numa clínica psiquiátrica. Uma esquizofrenia qualquer.

“É genética” assegurou o médico à mãe e ao irmão.

“Eu sei, o meu marido também tinha.”

Tinha. Com ponto final. O médico olhou para ela e percebeu a carga enorme que ela guardava no coração, e horror do passado. Com esse “tinha”, a mãe pareceu contar-lhe exactamente toda a história e toda a dor que tinha passado com o marido.

Carlos olhou para o irmão, e também eles, como o médico, compreenderam o que tinha acontecido ao pai.

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