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Vencemos

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“Perdi” disse ele ao entrar pela porta. Tinha a cara pesada, presa numa expressão negra, como se tivesse envelhecido vários anos. Olhou-a com um esgar que pretendia ser um sorriso, mas que era a viva imagem da dor. Ela arrepiou-se e, sem querer, começou a chorar. Abraçou-o imediatamente e secou as lágrimas. Não queria agir daquela maneira, tinha de haver força, tinha de encarar aquilo como era.

“Desculpa” disse. Segurou na cara dele com as mãos, e viu o medo e tristeza nos seus olhos. Partiu-se-lhe o coração, e baixinho, de voz embargada, ralhou-lhe: “Ainda não perdemos. Não perdemos, estás a ouvir?”

Eles tinham-se conhecido num grupo de apoio a pessoas que tinham perdido familiares para aquela doença terrível. Poucas pessoas que os acompanhavam no grupo conseguiam dizer a palavra “cancro”. Choravam, usavam eufemismos, metáforas, comparações. E quando alguém chamava o cancro pelo nome, eles ouviam soluços reprimidos, como se estivessem num funeral. Ela não duvidava que, para muitos deles, o sentimento era mesmo esse, o de viver num funeral perpétuo, eterno, sobreviviam na base da perda, da dor, sobreviviam arrastando-se atrás da pessoa que já não existe – mas que parece mais real do que nunca.

Eram os únicos que tratavam o cancro pelo nome. Concordavam que o faziam porque conheciam o cancro. Tratavam-no pelo nome porque não era “a doença” ou “o bicho”, era cancro. Cancro. Custava ouvir e custava dizer, mas era o mínimo que podiam fazer para não deixar que os vencesse completamente, independentemente de morrerem ou não, de sofrerem ou não. Dizer o nome era encará-lo de frente, com confiança, como a um inimigo que conheciam bem, e dizer “vou vencer-te, porque não tenho medo de ti.” E claro, depois de ter levado duas das pessoas mais importantes da vida deles, tratá-lo pelo nome, de frente, enquanto pensavam neles, era vencê-lo, era mostrar que não tinha vencido ninguém. Era como mostrar que estavam de pé, que a doença nunca vencia; podia matar, mas não vencia. Os lutadores são sempre vencedores, até na morte. Não tinham medo dele. Talvez raiva, mas recusavam-se a ter medo. No entanto, mesmo com essa confiança, não havia nenhuma conversa ou pensamento que não fosse acompanhada de um nó na garganta e de uma dor no peito. Um nó na garganta e uma dor no peito que eles sabiam que iria durar para sempre.

Simpatizaram logo um com o outro, e os encontros no grupo de apoio passaram a ser seguidos de um café, de um jantar, de um abraço, de um beijo. Evoluiu rapidamente, e dois anos depois estavam casados. O dia do casamento foi especial, tanto pela felicidade que sentiam como pelas pessoas que faltavam. Nesse dia, várias cadeiras ficaram vazias, com as fotografias das pessoas que já não estavam fisicamente presentes em cima da mesa. O sentimento geral era solene, era uma homenagem ao amor em toda a sua forma. E todos concordaram que tinha sido o dia mais bonito e feliz que tinham vivido nos últimos tempos.

“Perdi.” Aquela simples palavra que ecoava na cabeça dela durante a noite, durante todas as horas do dia. Não sabiam o que se dizer, agora que a ideia de serem vencedores tinha caído por terra. Pensavam-se livres, sentiam-se abençoados, mas estavam enganados. Deveriam ter sabido, deveriam ter largado essa inocência e essa ingenuidade tão pueril, tão adolescente, de que nada lhes aconteceria. Deviam-se ter preparado para essa possibilidade. Por isso, embora estivessem os dois acordados, quietos na cama, a olhar para o tecto, a pensar no passado luminoso e a temer o futuro que parecia ser negro, não falavam, com medo de chorar, incertos do que dizer. Doze anos depois de se casarem, eles sentiam que tinha perdido a luta quando o inimigo tinha decidido atacá-los de novo.

No dia seguinte ao diagnóstico, ela decidiu. “A melhor defesa é o ataque. Temos de saber as nossas opções. Não perdemos. Não existem perdedores, lembras-te?” sorriu-lhe. Sentia-se muito menos valente do que aparentava, mas, no fundo, sabia que dizia a verdade, a verdade que eles sempre tinham sentido e sabido, mas que agora parecia meio perdida no emaranhado da vida. A vida nunca corre como pensamos.

Ela falava como se os dois estivessem doentes, porque eles eram um só. E eles encararam o cancro, encararam de novo aquela doença nefasta como se os dois estivessem doentes. Sofreram juntos a quimioterapia, tentaram juntos a radioterapia. Fizeram reiki e outras medicinas alternativas. Fumaram juntos marijuana, e nesses momentos conseguiram descontrair e rir juntos também. Raparam o cabelo juntos, mudaram a dieta juntos. Iam juntos às consultas, ao grupo de apoio – onde agora todos chamavam “cancro” ao cancro, uma palavra que naquele momento lhes queimava a pele. Recusaram-se a ouvir que era difícil, recusaram-se a pensar que poderia ser em vão.

Ela, sem lhe dizer, rezava pelo dia em que o médico lhe daria uma boa notícia, em que pudessem ir comer uma pizza e beber uma litrosa de cerveja.

Ele, sem lhe dizer, pensava no que decidiria para o seu funeral e na decisão de morrer em casa ou no hospital.

Foram-se abaixo secretamente, sozinhos, individualmente, enquanto animavam o outro com palavras de esperança e gestos de carinho.

E, no entanto, sentiam-se mais unidos que nunca. Voltavam a sentir que o cancro poderia levar tudo menos eles, que eles seriam sempre vencedores. Que o amor seria sempre maior que a doença.

Foi juntos que, três sessões de quimioterapia depois, ouviram o médico dizer que o cancro tinha desaparecido. Que tinham vencido aquela batalha. “Sabem que a guerra pode não ter acabado. Não gosto de usar a palavra ‘curado’ até depois de cinco anos. Agora temos de esperar, mas este… este já cá não está” sorriu o médico.

“Vencemos” disse-lhe ele ao ouvido, abraçando-a.

“Venceste” ela apertou-o com mais força, e escondeu as lágrimas nos ombros dele.

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Rosa Machado
Curiosa e fascinada pelo que não compreende, bicho dos livros e criadora compulsiva de hipóteses mirabolantes. O tempo não existe quando há conversas filosóficas sobre nada, gargalhadas dos amigos, abraços a animais, viagens pelo mundo e todo o tipo de arte.

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