O mundo que conhecemos hoje, por muito difícil que nos seja de admitir, foi criado com base numa cultura de medo. Através de níveis de hierarquia, com os que estão em patamares superiores de poder a exercerem sobre os que estão abaixo, o medo tornou-se a arma de controlo por excelência, que abrange a todas as áreas da nossa vida, com o passar do tempo mais sofisticada e intrincada.
Na verdade, e hoje podemos ver isso com clareza, o medo é um vício, daqueles que no princípio parece inofensivo, que dizemos que não nos vamos viciar, mas que, pouco tempo depois, consome-nos, controla-nos e domina-nos. Se durante tanto tempo o medo foi usado como a arma dos mais fortes contra os mais fracos, no mundo em que hoje vivemos ele domina também os primeiros, talvez mais do que eles dominam alguma coisa. Por isso, também, o que vemos no mundo de hoje é um sistema cada vez mais complexo de focos de medo e de manipulação.
Num noticiário de uma televisão, seja ela qual for, 70% são notícias de crise, guerra, desgraças, mortes e problemas, 20% é futebol, nomeadamente as guerrilhas entre clubes, e 10%, quando é tanto, são notícias de desenvolvimento, positivismo e celebração. Dia após dia, vejo um velho ditado a cumprir-se na ordem inversa. Um barco que está sobre o mar, só afunda se a água entrar dentro dele, e todos os dias mais água dum mar poluído de medo entra no barco que cada um de nós é, levando-nos a que nos derrotemos, a que nos afundemos, a que baixemos os braços.
Não percebemos que, quando alguém nos coloca um medo, seja sobre o que for, esse alguém vive mais medo do que nós mesmos, pois o que tem a perder é muito maior do que o que algum dia nós perderíamos. É isso que hoje começamos, cada dia mais, a compreender, nomeadamente com o arrastar duma crise que, na verdade, não é financeira, económica ou política, é uma crise de poder, onde as estruturas vigentes, corruptas, revelam-se embrenhadas na sua própria armadilha, como um caçador arrogante e ambicioso, que cria um sistema para ter menos trabalho a caçar, fazendo com que sejam os próprios animais a caçarem-se a eles mesmos, sendo o seu esforço mínimo e o seu proveito maximizado.
Quando nos libertamos da cultura do medo, ainda que com ele tenhamos que lidar a cada dia, o ar torna-se mais puro e respirável, conseguimos ver mais longe, conseguimos ultrapassar as próprias limitações, conhecemos partes de nós mesmos que nem sequer sonhávamos existirem, ultrapassamos limites e barreiras, conseguimos, no fundo, ser felizes. Veja-se que o que mais incomoda a muita gente é a felicidade alheia. Nos próprios espaços de trabalho, alguém que esteja feliz e bem, não é um bom trabalhador, não se esforça, não se compromete. Na vida, se alguém está bem, é porque não tem problemas e, como tal, deve ter a vida facilitada, com cunhas e afins, sendo logo foco de inveja.
Falamos muito de crescimento e desenvolvimento, em termos sociais e económicos, parecendo até que a sociedade só se move nesse sentido, esquecendo-se das mais básicas regras da economia numa utopia duma perpetuidade. No entanto, não conseguimos crescer como queríamos, apesar de todos os esforços. Num dia não há acesso a crédito para se comprar casa, mas agora já é a melhor altura, porque, milagrosamente, os bancos conseguiram ter novos fundos e, como este exemplo, há tantos outros, basta abrir os olhos.
O medo, apenas o medo, é a arma que magistralmente é usada em cada dia, mas a verdade é que, cada dia mais, há quem o perca, há quem dele se liberte, há quem arrisque algo diferente, ser diferente. O medo é uma prisão real, baseada na ilusão de uma limitação, movida por uma ganância de poder. O medo é um organismo vivo, alimentado por esses mesmos que o exercem, um monstro que pensam dominar, mas que, calmamente, espera o tempo certo para mostrar que, na verdade, foi ele sempre quem mandou e controlou. Quando deixamos de ter medo, quando, apesar de podermos falhar, cair, magoarmo-nos, levantamos os olhos para os céus, colocamo-nos de pé e seguimos em frente, compreendemos que desse monstro nada mais resta em nós do que a sua memória e a lição que nos proporcionou. Hoje, cada dia mais, precisamos de aprender a libertarmo-nos dos medos, pois dessa forma, aí sim, poderemos crescer, na proporção correcta e justa.