Mank

Com grande entusiasmo, decidi finalmente ver o filme “Mank”, que há algumas semanas vem sendo imensamente elogiado. 

Começo por dizer que há diversos aspectos deste filme que fariam com que todo o meu entusiasmo fosse recompensado, com a brilhante sensação de ter as minhas expectativas correspondidas. Tinha a expectativa de ver um filme robusto, completo na sua identidade cinematográfica, pelo simples facto de ser realizado por David Fincher (um dos realizadores mais cotados da actualidade e considerado por muitos o melhor da sua geração, com filmes como “Seven”, “Social Network” e “Fight Club”). A somar a este aspecto, “Mank” conta com um elenco forte e talentoso, com o inigualável Gary Oldman (Mank), Amanda Seyfried (Marion Davies), que surpreende quando menos contamos, Lily Collins, que tem tido um claro crescimento, e ainda Charles Dance, que, apesar de ter tendência para papéis um pouco parecidos (na fase mais recente da sua carreira), apresenta sempre uma prestação com charme e competência. Para além de todos estes aspectos, temos ainda a “cereja no topo do bolo”, o tema do filme. “Mank” conta-nos a história sobre a escrita do argumento de um dos filmes mais elogiados de sempre – “Citizen Kane”.

Citizen Kane”, considerado por muitos historiadores como o melhor filme de todos os tempos, é uma experiência de técnicas cinematográficas, acompanhada de uma história densa, que através de “flashbacks”, conta a vida e o legado de Charles Foster Kane, através de um jornalista que procura a toda a prova, descobrir o significa da palavra “Rosebud”. Um dos aspectos a evidenciar neste filme, para além da história é a genialidade das técnicas inovadoras e experiências visuais idealizadas por Orson Wells.

“Mank” é um filme que nos dá a conhecer Herman J. Mankiewicz, um argumentista alcoólico da “Era de Ouro do Cinema Americano”, com uma arte imensa para a escrita mas com uma arte ainda maior para o raciocínio lógico e para a argumentação verbal, principalmente quando essa argumentação não é bem-vinda. David Fincher mostra-nos “Mank” acamado e “enclausurado”depois de um acidente, com duas senhoras que o ajudam numa única missão – escrever “Citizen Kane”. Durante todo o tempo de desenvolvimento do argumento, revemos através de “flashbacks”, partes da vida de “Mank”, da sua intensa vida social e dos jogos políticos de “Hollywood” dos anos quarenta. Conhecemos a relação próxima que desenvolveu com Marion Davies (Amanda Seyfried) que em muito influênciou uma das personagens de “Citizen Kane”. Conhecemos também a difícil relação com William Randolph Hearst (Charles Dance) que foi uma das pessoas que mais lutou para que “Citizen Kane” não viesse a ser libertado.

Tenho mais uma vez de “tirar o chapéu” a Gary Oldman que por mais que esteja estabelecido o seu poderio e a capacidade do seu talento, consegue sempre surpreender. Existe no seu trabalho a eficácia de credibilizar cada emoção, cada movimento e cada pensamento das suas personagens, sem dar hipótese do espectador perceber que Gary Oldman está “apenas” a representar. Consegue trazer ao ecrã um “herói”, que não se comporta como tal, que tem comportamentos mais do que questionáveis, mas sem gerar qualquer animosidade no espectador para com a personagem. Amanda Seyfried dá-nos um lado fresco, novo e cativante através de uma personagem complexa, com a qual o espectador dificilmente poderia  “simpatizar” ou criar empatia, mas ela consegui-o com muita facilidade.

É um filme cheio de cenários hiper-detalhados, figurantes, cenografia de época, personalidades históricas e todo o charme da “old Hollywood”. É usado o preto e branco como instrumento de aumento de nostalgia, como um modo de honrar o cinema da altura e aproximarmo-nos emocionalmente do mesmo. Mas nem tudo é excepcional neste filme.

“Mank” é um filme de cinéfilos para cinéfilos. É um filme que retrata vários nomes que estão na história do cinema de Hollywood e das questões políticas desse mesmo cinema. Contudo, “usa” nomes com os quais o “cidadão comum” certamente não está familiarizado e mesmo “cinéfilos lúdicos” terão certamente de “rever alguma matéria” ou de pesquisar um nome ou dois (tal como eu fiz…). Não é um filme com um narrador omnisciente, nem um filme que nos apresente o contexto dessas mesmas personagens ou das suas posições na história. Este aspecto faz com que o filme se torne um pouco “distante” nos momentos em que procuramos entender as relações e posições de determinadas personagens. Suaviza o impacto que a narrativa poderia ter no espectador, por faltar contexto para compreender a grandeza de determinados momentos da história contada no filme.

Como já mencionei, visto ser um filme de David Fincher, as minhas expectativas eram altas. Fincher habituou-nos a filmes densos, a histórias cativantes, a histórias “fora da caixa”, a personagens muito pouco usuais, a um tipo de “storytelling” bem desenvolvido e a imagens incríveis. Tudo isto embrulhado numa carga emotiva presente, que geralmente puxa para o “suspense” (“Seven”, “Gone Girl”, “The Game”, “Zodiac”) ou para uma credibilidade que torna o filme numa mais-valia (“The Social Network”, “The Curious Case of Benjamin Button”). 

Senti ao chegar ao fim do filme, uma agradável sensação, mas sem impacto e sem encantamento, algo não usual em Fincher. “Mank” é um filme que vive de boa realização, interpretações de elevadíssimo nível, cenários glamorosos e complexos, mas vive de uma história que retrata muitos aspectos com que não estamos familiarizados. Tudo à volta do filme brilha, numa realização pouco usual para Fincher, com o seu ADN cinematográfico menos visível e que nos faz sentir falta dos seus momentos de impacto e das suas histórias que manipulam o espectador e as suas emoções.

Sem nunca retirar valor ao trabalho excepcional dos actores, da sua produção e a um realizador fora de série, depois de “Mank”… chegou a altura de rever o filme “Fight Club”.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

The Wire (2002-2008)

Next Post

O erro de ter medo

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Mergulho no Passado

Subúrbio americano. Um homem em fato de banho entra no jardim de uma vivenda com piscina. Mergulha.…