A paixão segundo Clarisse

É imperativo ler Clarisse.

Depois de anos a ameaçar, seduzida por frases soltas e citações nas quais fui tropeçando ao longo dos tempos, eis que enfim se dá o encontro com uma das principais referências da literatura brasileira contemporânea.

A paixão segundo G.H. é, como assume a autora no prefácio, “um livro como qualquer outro“, mas que deve ser lido “apenas por pessoas de alma já formada”, pessoas que “entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém” e que dá “pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.”

Não poderia ser fácil esta alegria, afinal falamos de Clarice Lispector, caso singular da literatura brasileira. Nascida em 1920 na Ucrânia e falecida em 1977 no Brasil, país para onde se mudou aos 2 anos de idade, é uma das referências maiores da literatura dita filosófica e existencialista, que tem para muitos o seu expoente máximo no inquietante romance de 1964, A paixão segundo G.H.

Considerado por muitas vozes o livro ‘maior ‘de Clarisse e também um dos mais complexos, contou com 5 edições em vida da escritora. Esta obra apresenta uma forma de narrar que se afasta largamente dos cânones da narrativa tradicional, afinal trata-se da perturbadora viagem ao interior de si mesma, pelo que a omnipresente voz da consciência torna o texto muitas vezes labiríntico.

O enredo? Uma mulher, uma barata e a mais inquietante das buscas.

G.H. são as iniciais do nome da narradora e personagem principal do livro e nunca nos são dadas mais do que as iniciais. Trata-se de uma escultora bem-sucedida que descobre e esmaga uma barata no quarto da empregada que acabou de despedir. É através desse acontecimento aparentemente irrelevante que se desencadeia uma inquietante reflexão existencial e busca interior pela própria identidade.

Inicia-se a partir daqui um longo monólogo na primeira pessoa em que as palavras se multiplicam numa tentativa, a única possível, de dizer o indizível, de atingir a essência da condição humana. É nela que G.H. vai, a medo, ensaiando o toque. O objectivo poderá aproximar-se da ideia de Bernard Brenson que encontramos expressa na epígrafe da obra, “Uma vida plena pode ser aquela que alcance uma identificação tão completa com o não-eu que não haja mais um eu para morrer”.

G.H. pede, ao longo de toda a narrativa, a mão ao leitor. Pede-lhe a mão, porque “Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão. Oh, pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão – mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca.”

E é de mão dada com o leitor que a busca acontece, estamos também nós no encalço dessa essência que nos escapa. Diz a narradora num dos seus múltiplos questionamentos, “[…] estou procurando. Estou tentando entender”. Nela não há certezas, apenas busca e angústia. No entanto a confiança do leitor é inabalável. Estive de mão dada com ela até ao fim.

Ao esmagar a barata dá-se o momento de revelação para G.H., o momento de tocar na essência, de despir-se de todos os pretextos que, até então, haviam impedido o encontro consigo mesma. “Eu fizera o acto proibido de tocar no que é imundo. E tão imunda estava eu, naquele meu súbito conhecimento indirecto de mim, que abri a boca para pedir socorro. (…) O que temia eu? Ficar imunda de quê? Ficar imunda de alegria. (…). Eu lutava porque não queria uma alegria desconhecida.”

Num romance onde não há propriamente um enredo, não há principio nem fim, apenas caminho. E o caminho é turvo, porque é desconhecido, tumultuoso, porque é desejado e temido, esse do encontro. O grande momento do livro acontece quando G.H., num ‘regresso’ ao seu estado mais primitivo, e apesar do nojo, come a secreção branca amarelecida expelida pela barata. É este o momento da epifania:

“Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha boca, e então comecei a cuspir a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma, gosto de um nada que, no entanto, me parecia quase adocicado como o de certas pétalas de flor gosto de mim mesma eu cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim tivesse cuspido minha alma toda. (…) O que era difícil, pois a coisa neutra é extremamente enérgica, eu cuspia e ela continuava eu. Só parei na minha fúria quando compreendi com surpresa que estava desfazendo tudo o que laboriosamente havia feito quando compreendi que estava me renegando. (…) E, como quem volta de uma viagem, voltei a me sentar quieta na cama. Eu que pensara que a maior prova de transmutação de mim em mim mesma seria botar na boca a massa branca de barata. E que assim me aproximaria do… divino? do que é real? O divino para mim é o real. (…) O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça que se chama paixão. O que estou sentindo agora é uma alegria. Através da barata viva estou entendendo que também eu sou o que é vivo. Ser vivo é um estágio muito alto, é alguma coisa que só agora alcancei. É um tal alto equilíbrio instável que sei que não vou poder ficar sabendo desse equilíbrio por muito tempo a graça da paixão é curta. (…) E entregando-me com confiança de pertencer ao desconhecido.”

A paixão segundo G. H. remete para o sofrimento bíblico da Paixão de Cristo, sendo que o momento de nojo e repulsa antecede a revelação. Ao comer a barata, a protagonista encontra a verdadeira razão de estar no mundo e entrega-se ao silencio: “…pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.”

Li Clarisse. Finalmente.

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