Sharenting: Pai, Mãe não me exponham

Quem me conhece, está consciente da minha opinião sobre este tema, não se trata apenas de proteção, mas de respeito. Os filhos não são “nossos” (há quem discuta este conceito de “nossos” quer por motivações emocionais, legais ou de qualquer ordem ou interpretação) e confesso que não sou muito complacente com este tema.

Fico feliz por não ter nascido na era do digital e do sharenting. Fico ainda mais feliz por não ter ficado na decisão de terceiros mesmo que com as melhores intenções (que fique claro que não duvido delas) colocarem fotografias minhas na Internet. Mais uma vez, quem me conhece sabe que partilho muitas fotografias nesta bolha gigante chamada redes sociais, mas são, como disse, minhas, consente dos riscos plena das minhas capacidades.

Sharenting o que é?

É um termo que resulta da junção das palavras inglesas share (partilha) e parenting (parentalidade) e consiste na publicação de fotografias e vídeos dos filhos nas redes sociais, sem a aparente consciência que, uma vez na Internet, para sempre na Internet.

Pai, mãe e afins já pensaram nos reais perigos destas partilhas? Este momento, aparentemente inofensivo, pode acarretar riscos e ter consequências graves para as crianças.

Fico intrigada com o que leva muitos pais a fazer isto, tirando, claro, os chamados “influencers”, que vivem também muito dessas partilhas para promover marcas associadas aos seus filhos. Intrigante é mesmo o motivo para que mal os filhos nasçam sejam criados perfis nas redes sociais em nome próprio. Há alguma justificação para isto e que eu consiga entender? Se houver, ajudem-me, porque não quero morrer inculta.

Estas crianças veem a vida exposta, muitas vezes desde que dão o primeiro choro, passando pelo primeiro aniversário ou o primeiro dia de escola e, muitas vezes, em situações altamente embaraçosas – como a tirar macacos do nariz. Os pais riem dos internautas que fazem “memes” e o visado ainda não tem consciência do que é este mundo. Será assim que mostramos que que respeitamos os nossos filhos?

Não duvido que as pessoas que fazem isto não amem os seus filhos. O problema não é o amor, é o respeito que está interligado. E (ainda) nem falei da questão legal…

Assumo o risco de neste momento ser chacinada, depreciada, mas pais não fujam já. Continuem em ler e não sintam isto como um ataque ou uma critica pessoal. Assumam, sim, como uma “ajuda”.

As nossas crianças estão em processo de formação de identidade e, quando fazemos este sharenting, muitas vezes associamos os nossos filhos a clubes, a partidos, a ideologias, pessoas e sítios que mais tarde eles podem não se rever e a Internet é cega, surda e muda. Não vai permitir que os nossos filhos se demarquem disso, porque isso não terá o mesmo impacto nem a mesma audiência.

Lembram-se da foto a tirar macacos no nariz? Uma simples imagem que está mesmo a pedir ao Sr. Bullying que se junte à festa. Queremos mesmo desencadear (como protagonistas) essa reação, com consequências nefastas para a autoestima da criança ou jovem?

E não se trata só dessa temática. Quantos dos nossos atuais recrutadores fazem uma pesquisa intensiva da presença digital dos futuros candidatos e, muitas vezes, o que foi partilhado no passado pode ser decisivo em processos de seleção e recrutamento. Queremos ser nós, pais, mais uma vez os protagonistas deste desfecho?

Confesso que, quando este é tema no meu circuito de amigos e familiares (sim, porque os meus não são diferentes dos vossos) e me dizem que não “há mal”, porque está restrito a um publico e que só X ou Y pode ver, não conseguir compreender se é total desconhecimento ou negação. Não é preciso ser perito em cibersegurança, em violação de privacidade ou em partilha, compra e venda de dados para compreender isto.

Sejam sinceros: alguém alguma vez se deu ao trabalho de ler todas as letras pequenas, quando criou uma conta nas redes sociais? Eu só li as mais “gordas” e não foi nada bonito, porque percebi que tudo o que postamos deixa de ser “nosso” e estamos a autorizar de portas escancaradas que a Internet as use da forma que entender. O risco é igual tanto para nós como para os “nossos”.

Onde ficam os direitos da criança no meio disto tudo?

O direito à imagem e à privacidade vem previsto na Constituição da República Portuguesa (artigo 26.º) e do Código Civil (artigos 79º e 80º). Embora o legislador não tenha previsto esta Era dos magnatas do digital e a lei não estabelecer regras específicas para a partilha de fotos de menores nesta pegada digital, entende-se que é um dever dos pais proteger e respeitar a imagem e a privacidade da criança.

Não foi assim há tanto tempo que o Tribunal de Relação de Évora decidiu, no âmbito de um processo de regulação das responsabilidades parentais, que os pais deviam abster-se de partilhar fotografias da filha nas redes sociais.

O acórdão vai mais longe ao referir que a “salvaguarda do direito à reserva da intimidade da vida privada e da proteção dos dados pessoais e, sobretudo, da segurança da menor no Ciberespaço.” O Tribunal afirma ainda que “(…) os filhos não são coisas ou objetos pertencentes aos pais e de que estes podem dispor a seu belo prazer. São pessoas e consequentemente titulares de direitos.”

E o direito da imagem não é maior ou menor do que outro direito da criança. Por isso, o Tribunal afirmou categoricamente que “é uma obrigação dos pais, tão natural quanto a de garantir o sustento, a saúde e a educação dos filhos.”

Só como nota para quem não saiba: este acórdão teve origem na proibição de uns pais de uma criança de 12 anos em partilhar fotografias desta nas redes sociais. Contudo, a sua mãe, revoltada com esta proibição imposta pelo Tribunal de Setúbal, recorreu para a Relação (mãe não veja isto como uma critica, mas como uma chamada de atenção).

E se amanhã esta criança, adolescente vitima de bullying, que não arranja emprego, processa estes pais pelo uso indevido da sua própria imagem?

Campanha Deutsche Telekom

Impactante esta campanha publicitaria de uma empresa de telecomunicações alemã, que mostra como através de partilhas de fotografias “inofensivas” online é possível manipular a identidade de qualquer um. E a imagem dos nossos filhos temos nós, pais, o dever de proteger.

Neste vídeo que convido todos a verem, Ella, de 9 anos e com a sua aparência envelhecida com recurso a inteligência artificial, mostra aos pais tudo aquilo a que está suscetível no presente e no futuro, devido às imagens que foram partilhadas na Internet.

Em 2030, estima-se que cerca de dois terços dos casos de fraude identitária na geração mais nova terão como causa o “sharenting”. Queremos ser nós mais uma vez protagonistas desta história, pelos piores motivos, na vida dos nossos filhos?

Pai, Mãe, protejam as pessoas que mais amam e não os exponham.

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Comments 1
  1. Excelente artigo! Parabéns Margarida! Como é que é possível que a sede de partilha se sobreponha à desinformação? As recentes fraudes mediáticas dos: “ olá Pai” e “olá mãe” que todos ouvimos falar, são na verdade versões muito arcaicas do que se avizinha com a senda da intiligencia artificial. Neste caso do sharenting , pais e n mães tornam-se parte activa no bullying que os próprios filhos sofrem. Hoje em dia a inteligência artificial é capaz do chamado “ nude generator “ , o que faz com que seja possível através das fotos das nossas crianças vestidas, publicadas pelos pais ou com o seu consentimento, se tornem em fotos de crianças nuas, com uma veracidade capaz de satisfazer e alimentar monstros da pedofilia à distância de um click. É assustador!

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