Ritinha, meu amor – último capítulo

“Estou, mais uma vez, no meu sofá junto à varanda, por onde entra o sol de inverno. Perto de mim, como em tantas outras vezes, dorme a minha cadela, a Rita, a minha caninossaura nos seus 15 anos e meio de vida. Podia ser só mais um dia em que escrevo.”

Começava assim o meu artigo em Fevereiro (“Ritinha, meu amor”), altura em que descobrimos, casualmente, porque não tinha qualquer sintoma, um tumor num pulmão.

Hoje estou sentada no mesmo local, mas sobra chão, notando-se a ausência da cama dela, e nela, ela. A Rita partiu há 4 dias. Estou ainda muito atordoada. Sei que não é um assunto fácil, e talvez alguns leitores não consigam lê-lo de ânimo leve.

Viveu, após o diagnóstico, 2 meses sem qualquer alteração visível no seu bem-estar ou disposição. Contudo, pelas consultas quinzenais, ultimamente, semanais, íamo-nos apercebendo de que a infecção progredia. Era fácil perceber onde ia terminar, embora a velocidade ou a gravidade fossem difíceis de antever. Sabíamos onde chegaríamos, não saberíamos é quando. O apetite escasseou, e eu inventava diariamente novas iguarias para a seduzir. Regava a sua ração com chá de chouriço para dar cheiro e sabor. Misturava legumes. Embebia bolachas maria na água da cozedura da carne. Objectivo maior: fazê-la comer. Para o final: fazê-la comer o que quer que fosse.

Os últimos quinze dias foram os piores: os rins começaram a falhar, o que significava o princípio do fim. Deixou totalmente de comer, cerca de 5 dias antes. A alimentação que lhe dava à seringa era manifestamente insuficiente e ainda assim, forçada.  Emagreceu 4 kg, o que correspondia a 20% do seu peso. No último dia, nem água bebia por si.

A decisão da eutanásia surgia-me cada vez mais próxima. No último dia, ao chegar a casa, ao fim da tarde, quase não reagiu à minha chegada, não mostrou qualquer interesse em ir à rua, e quando tentei ajudá-la a levantar-se, verifiquei que não tinha equilíbrio algum. Tinha o olhar esgotado. Além do desequilíbrio, o tremor, que me surgiu duvidoso na véspera, mas evidente nesse dia. Seguimos para as urgências. Confirmaram-se novas massas tumorais que não existiam no último raio-x, 15 dias antes. A respiração, habitualmente ao ritmo de 20 por minuto, estava em 50, sinal de desconforto.

Poderia dizer que decidi naquele momento, mas não. Decidi apenas que seria naquele momento, confrontada com um sofrimento evidente e com a impossibilidade de reverter o quadro clínico. A ideia já se insinuava há dias, no cumprimento da promessa de não a deixar sofrer. Eu sofro e sofrerei, mas pude poupá-la a isso. E a possibilidade de o fazer, ainda que em último recurso, era um alívio.

(a utilização dos tempos verbais é reveladora da confusão mental em que ainda me encontro. Frequentemente tenho de corrigir o verbo para o passado. Ainda foi tudo muito recente…)

A Rita foi paciente do Dr. Nuno, mas também vista pontualmente pela Dr.ª Diana. Ambos a acompanharam nestes meses derradeiros. Com os dois, tive sempre uma conversa muito  directa. Explicaram-me o que se passava em linguagem clara. Deram-me alternativas. Decidimos juntos. Deixei claro que, não havendo muito a fazer e tudo o que havia era prolongar-lhe a vida por mais uns dias a um preço demasiado alto, não queria exames que a fizessem sofrer. Não era importante, nesta fase, saber se o tumor tinha 2 ou 2.2 cm. Não precisava fazer exames complexos para conseguir fazer uma previsão de fim de vida, quando os mesmos não lhe iam alterar o diagnóstico ou a progressão da doença. Basicamente, fomos atentando nos sintomas e recorrendo aos paliativos.

A relação com o veterinário é importante para nos dar uma perspectiva realista e nos dar também algum apoio no sentido em que fizemos tudo o que podíamos para cuidar do nosso amor canino.  Daí, ou talvez também ajudada pela minha experiência com o voluntariado, não hesitei nesse dia, e continuo a achar que fiz o que devia.

Dada a última sentença e enquanto esperava pelo meu filho que chegaria em breve, sentei-me no chão do consultório com ela. Encostei-me à parede e dispu-la sobre as minhas pernas, a sua cabeça na minha barriga. Fiquei por cerca de meia hora a falar com ela e a acariciar-lhe o corpo. Senti-a reconfortada em estar ao meu colo, apesar da hiperventilação. Tenho, se é possível dizê-lo desta forma, algum conforto de ter partido desta forma, junto a mim. Temi por várias vezes que morresse sozinha em casa, enquanto estávamos no trabalho ou na escola. Temi que o meu filho a encontrasse morta, porque era o primeiro a chegar a casa. Continuo a sentir o seu peso reduzido nas minhas pernas, a sua cabeça a repousar na minha barriga. Conforta-me.

A injecção foi dada num ambiente calmo, com a família por perto. E isso, repito, reconforta-me. Primeiro a substância é introduzida devagar, para a acalmar. Depois, quando já está sedada, mais rapidamente, para fazer parar o coração. Confirma-se o fim do batimento. Continuaram os afagos por mais algum tempo.

Não vou dourar a pílula nem dar-vos panoramas sobre o arco-íris com que gostamos de nos iludir. Custa horrores. Dói muito. Não tanto o momento em si, mas a ausência que vem depois, quando acordamos no automático do “ vou levar a Rita à rua” e depois percebemos que já não. E estas ausências repetem-se ao longo de dias e de momentos.

Contudo, poder tê-la poupado é o que nos consola. Ter um animal é também isto, responsabilizar-se em vida, incluindo a morte. Não trouxe as cinzas, não vejo sentido nisso. Fiz-lhe tudo o que pude em 16 anos. Ela vive em cada canto da casa, dos jardins na vizinhança, e sobretudo no meu coração e de tantos que lhe queriam bem. Como alguém disse: esta miúda quando partir vai destruir muitos corações, ela tinha uma legião de fãs.

Ainda assim, quando publiquei nas redes sociais o ocorrido, porque há de facto muita gente que me perguntava por ela, ainda recebi mensagens e comentários impróprios. Que me armei em Deus, decidindo o fim da vida dela. E nisto, caramba, já nem me espanto com a falta de tacto, mas antes me enraiveço com a ignorância. Só quem nunca viu o sofrimento sem esperança é que pode usar-se desse argumento, e aqui a semelhança entre a eutanásia humana e animal é imensa. Seria melhor deixá-la sufocar? Para cumprir um desígnio de um deus sádico?  Ou obrigá-la, de forma egoísta,  a viver em sofrimento porque a queria aqui? Queria, sim, mas bem, não neste desespero. Ou argumentos de que não é justo eu ter encurtado a vida, já de si tão curta? Confesso que não entendo. E penso nos animais que estas pessoas têm e que, a enfrentar casos destes,  serão condenados ao inferno em vida.

Depois há, e note-se que foi há 4 dias que ela partiu, aqueles que defendem que, rapidamente “ vá buscar outro, que isso passa”. Mais uma vez, a falta de sensibilidade é chocante. Infelizmente, tenho, na associação onde sou voluntaria, 400 opções, para além de tantos outros que conheço. Irei, sim, buscar outro quando para isso me sentir preparada. Primeiro preciso recentrar as minhas emoções. Depois, quando me sentir restabelecida, iniciarei uma nova aventura, de coração cheio, com um outro animal. Porque também prometi que não deixaria a dor toldar-me a vontade de amar. Há tantos animais nos abrigos a precisarem ser adoptados, que seria um egoísmo deixar-me secar por dentro.

A Rita partiu, mas está comigo. Foram 16 anos de muita cumplicidade e muito amor. Esteve comigo em momentos muito duros da minha vida pessoal. O elo é eterno. Não sei se existe o arco-íris e o céu canino. Não sei se as nossas almas se reencontrarão. O que sei, e isso é inquestionável, é que fomos extraordinariamente felizes e reciprocamente amadas. E isso já foi muito, muito, divinamente bom.

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