Ainda bem que não é tudo sobre mim.
Tu que sofres três vezes por semana, tu que descobres a doce vingança do futuro sobre o passado. Não sei se és o núcleo da família, tenho dúvidas sobre a tua filha, mais certezas sobre o meu neto. Sinto que ela não é feliz por nossa causa, sabes? Sinto que aquele eu não é boa massa e fomos nós que a colocamos no forno. A culpa é nossa. Não da condição dela, física, impossível de controlar, mas da condição que forma o mundo em nosso redor, fabrica palavras e pensamentos, torna-nos bonitos aos olhos dos outros. E a culpa é nossa.
Felizmente, salvámos o nosso neto. Felizmente, temos alçapão matinal, não tu que tens de descansar, mas tenho eu. Eu que não recebo muito, eu que prefiro dar, nem que seja para controlar, eu que preciso dessa função nos dias que me restam, eu, eu, eu. Afinal, talvez seja um pouco sobre mim. Onde ia? O nosso netinho, claro. Felizmente está salvo. Tem mundo nos olhos, tem semente na cabeça, tem o vigor de um homem fora da velhice. Talvez seja isso. Homem. Será a nossa função essa, criar bons homens, não saber criar uma mulher que tanto precisava de nós? Espera, ela precisava? Achas? Precisa? Claro que precisa mas, agora? Porque não antes, antes de tudo? Antes do corte com o horizonte, do corte com aquilo que a vida lhe oferecia e nós não. No entanto, ofereci o que todos oferecem. Ou pensava que ofereciam, já nem sei. Tudo me pareceu correcto, tudo o que fiz aprendi com os melhores, com o meu pai, o meu avô, os meus vizinhos, todos pilares da minha minúscula infância. Não, ela precisava daquilo tudo. Precisava de tudo aquilo que precisei para viver. Tudo, sem falhas, sem diferença. Eu não falhei. Nunca.
Ainda bem que não é tudo sobre mim.