Nada

Era uma qualquer meia-noite de desapego. Queimei as fotografias todas. Magoavam demais, levitavam-me nas mãos, eram sussurros de um passado de sonhos extraviados, guardavam as certezas de quem não duvida da fé. Recordavam-me que no presente eu não era mais do que uma desconstrução. Observei com prazer cruel o passado a desaparecer em cinzas. A juventude a desfazer-se – tão brilhante e leve, bela e eterna, desconhecida de ilusões que se partem e se transformam em guarda-chuvas destruídos, connosco ali debaixo da chuva sem perceber o que aconteceu.

Mas esqueci-me de apagar o fogo e tudo em mim ardeu, da alegria à esperança (e à falta dela). A sombra invisível da chama. O cheiro a desencanto. O mundo não era uma fotografia a preto e branco, misteriosa, sensível. Não era. O mundo tornara-se um incêndio incontrolável que me tinha queimado e me tinha deixado nua, todas as máscaras caídas da cara e quebrada no chão, como um pedaço de carne arrancado ou podre. Já só me restava a minha caveira, já só tinha para mostrar os meus ossos.

O incêndio consumira tudo o que tinha dentro, tudo o que conseguia dar, e apagara-se. Tudo em mim se extinguiu, apenas ficou um fragmento de indiferença e um medo que ia mordendo o meu coração desfeito.

Hoje ando descalça e cega entre as ruínas do que foi. Vou em direcção ao nada. Os cacos de possibilidades rotas espetam-se nos restos de pele chamuscada e eu continuo a arrastar-me pelos caminhos familiares das realidades fingidas. Finjo que não ardi. Finjo que tenho máscaras por cima da caveira. Finjo até que sei quem sou. Afinal, somos incompletos. Afinal, somos incapazes de ver em pó aquilo em que um dia acreditámos. Afinal, escolhemos ignorar o desassossego que temos dentro até o tornar tão grande que nos engole e nos deixa a flutuar no nada, ou mais precisamente: nos queima e nos deixa a deambular entre as ruínas do mundo, com vidros espetados nas pernas e a sangrar desolação.

Continuo a arrastar-me, mesmo cansada, mesmo perdida. Ainda ontem sabíamos tanto e segurávamos o tempo com as mãos em concha. Ainda ontem nos tínhamos tornado infindos e feitos de gargalhadas. Aquela juventude que quis queimar, aqueles sonhos que estão enterrados em lugares desconhecidos. Agora, caminho para o nada de mãos a abanar ao longo do corpo desgastado. Nem sequer sei onde estou. Nem sei quando lá vou chegar.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Somos todos eu – 1/4

Next Post

A minha viagem de finalistas

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Ler-te, cantando

A cultura de convergência há muito que veio para ficar, a conjugação das várias formas de arte cria verdadeiras…

Ele é Arte

Não se recordava do exacto momento em que o conheceu. A primeira lembrança que tinha na memória com ele, foi…

A apanhadeira de malhas

Menina. Menina foi o nome que lhe ficou. O do registo e baptizado arquivou-se num qualquer livro grosso de…