Sentou-se numa cadeira da sala de jantar, e colocou os vários álbuns, caixas e envelopes com fotos em cima da grande mesa de madeira maciça. Tinha acabado de se casar pela segunda vez. Tinha 50 anos, idade suficiente para saber que nem sempre as pessoas conseguiam agarrar as oportunidades que a vida lhes atirava, e ele estava determinado a apanhar todas as que conseguisse. A Laurinda, a sua recente mulher, tinha-lhe pedido para fazerem um álbum de fotos conjunto, da sua vida separados e da sua a vida a dois. Coisas românticas e típicas de mulheres, a verdade é que ele não tinha grande vontade de o fazer, mas sabia que esta nova oportunidade valia a pena, e queria fazer a sua mulher feliz.
Por isso, estava agora sentado à procura das suas melhores fotos. De muitas delas fazia parte a Carla, a sua primeira mulher. Olhou para as fotos com carinho, lembrou-se dos bons momentos vividos com ela. Do namoro, das viagens, do casamento. Dos pequenos segundos, como aquele sorriso para a máquina num jantar, ou a careta que ela fazia à última da hora na praia. E forçou-se a encarar a última foto com a sua primeira mulher, antes do acidente de carro que a tinha levado para sempre. Já não sentia uma dor desesperante ao olhar para aquela foto; apenas um vazio cheio de saudades. Beijou a foto, e voltou a olhar para ela, para a sua Carla, que tinha um ar sorridente e os olhos semicerrados pelo flash. Nenhum dos dois adivinhava que aquela seria a última foto. Dia 30 de Abril tinha feito cinco anos da sua morte, e ele continua a sentir a falta dela.
Pôs de lado as fotos dela, e tentou escolher algumas onde estivesse sozinho, ou com outros amigos. Acabou por escolher duas ou três em que a Carla também estava; sabia que a Laurinda não se importaria e que compreenderia. Talvez até ela tivesse escolhido fotos com ex-namorados, quem sabe?
“Então?” como se seguisse uma deixa, a Laurinda entrou na sala. “Já escolheste?”
“Não és boa pessoa, estava a pensar em ti!” brincou ele.
“Não estás sempre?” ela abraçou-o. “Então, e já escolheste?” repetiu.
“Sim” suspirou, e esticou-as para ela.
“Espera” disse ela, e saiu da sala.
Voltou segundos depois, com as fotos que ela tinha escolhido.
“Vês as minhas enquanto eu vejo as tuas? Se quiseres ver datas, estão atrás das fotos.” Encolheu os ombros e explicou “foi uma mania que herdei da minha mãe”.
Ele concordou.
“A Carla também tinha essa mania” sorriu. “Por falar nisso, escolhi algumas com ela…” tentou falar da forma mais natural que conseguiu, mas notou-se a voz embargada.
A Laurinda sorriu-lhe, e tocou-lhe na cara com a ponta dos dedos. “Claro, eu entendo”.
Ele olhou para as fotos, passando-as. A Laurinda quando era pequena, com os pais. Depois, com alguns amigos numa festa de anos, já nos anos 70. Dos anos 70 e 80 as fotos eram muitas, com amigos, familiares, em festas, discotecas, acampamentos, casamentos, carnavais e praias. Sorriu e apercebeu-se que as fotos, por mais diferentes que sejam as pessoas, têm sempre um passado e uma atmosfera em comum. Como se partilhassem todas uma memória colectiva, pessoal e intransmissível.
Numa destas fotos, algo lhe chamou a atenção. Quis ver melhor e aproximou-a do olhos. Mexeu nos óculos. “Não acredito!” murmurou.
A Laurinda também quis ver o que se passava, e olhou de lado para a foto que ele segurava. Ela, a sorrir, com um cigarro na mão, e os amigos dela a rodearem-na e a falar de algo que parecia importante. Nada de especial.
“Foi em Amsterdam, numa viagem que fizemos!” esclareceu.
Ele não ouviu.
“Estás a ver aqui?” ele apontou para alguém que estava atrás deles, dos protagonistas da foto. Apontou para alguém que passava atrás deles mas que, naquele momento, tinha também olhado para a máquina.
Ela arrepiou-se. Ele virou a foto, para ver a data. 30/04/1988. Começou a tremer. Voltou a virar a foto e olhou de novo para aquela cara que parecia vê-lo, ali longe, em Amsterdam, no século passado e numa outra vida.
A cara da Carla.
Elas tinham-se cruzado. A Carla tinha olhado directamente para a Laurinda, sem nunca imaginar, e numa data tão simbólica. Num tempo distante, noutra vida, num país que não era delas.
Ele tirou os óculos e lutou contra as lágrimas.
A cara de uma Carla nova, que talvez tivesse virado a cara para a foto porque ouviu falar a sua língua noutro país. Uma Carla jovem, com um olhar admirado, como se soubesse, como se naquele momento lhe tivesse sido dado a conhecer o futuro.
A cara de uma Carla jovem, que se tinha cruzado com alguém com quem partilharia um futuro que só existiria quando ela já tivesse partido. Que se tinha cruzado e que lhe tinha olhado directamente na cara, que tinha ficado registado para sempre naquela maldita data. Exactamente 20 anos antes de morrer num acidente de carro.