Vivia num ermo onde as vivendas se distribuíam esparsamente. Por detrás da sua casa, o bosque era como um pequeno universo fechado, com as árvores altas, cerradas, a formar uma espécie de fortaleza. Há anos que todos os dias caminhava por ali. No Inverno, o silêncio era uma estranha forma de paz, tão assustador quanto pacífico. Ainda assim, a curta distância que separava o bosque da sua casa fazia com que passeasse ali o cão na maioria dos dias. Ash, o pequeno teckel cor de mel, era obsessivo nas suas explorações: fazia sempre o mesmo percurso, parava sempre nas mesmas árvores, brincava sempre com os mesmos paus. Marina, embrenhada em pensamentos mais ou menos destrutivos, deixava-se passear pelo animal sem o impedir de viver aquelas horas à sua maneira. Eram inseparáveis, e conseguiam ler sem esforço o estado de espírito um do outro.
Hoje, Ash estava mais irrequieto. Por norma, era um cão alerta e muito activo, mas obediente e respeitador. Hoje, menos. Marina puxava-o para os caminhos habituais. O cão, de nariz espetado no ar, semicerrava os olhos e parava de repente, para depois enfiar o nariz junto à terra molhada e farejar freneticamente. A atitude do animal obrigou Marina a deixar ir os pensamentos que a inquietavam: começava a sentir que algo se passava, e a gestão financeira daquele mês de recursos diminuídos teria de esperar. Focou-se no comportamento de Ash. O cão, de rabo caído até ao chão, não parecia o seu cão. Avançava a medo, mas sem conseguir parar de explorar. De repente, parou junto ao que parecia ser uma cruz feita com paus. A estranha construção estava espetada no chão, perto de uma árvore coberta de musgo. Marina tinha a certeza de que aquilo não estava ali no dia anterior. Passavam sempre naquele trajecto e era impossível que tivessem ali estado sem terem dado conta do objecto.
Ash farejava avidamente. Rosnava e contorcia-se, como se adivinhasse qualquer coisa muito inesperada. Começou a esgaravatar a terra, quase furioso. Marina não reconhecia as atitudes do cão. Nunca o vira naquela agitação. Também ela começou a escavar. Não demorou muito até encontrar uma pequena caixa de madeira. Tirou-a com cuidado. A caixa não estava ali há muito tempo, e o facto de ter sido posta em cima de um pequeno plástico protegera-a. Ao seu lado, Ash farejava e latia, desconfiado.
Abriu a caixa devagar. Lá dentro, encontrou cartas e papéis com um aspecto antigo. Abriu uma e começou a ler.
“Madrid, 1978.
Querida Alma,
Sei que não vais entender. Não serei nunca capaz de ser quem esperavas que fosse, e quem mereces. Prefiro desiludir-te agora, mas permitir que refaças a tua vida. A minha seguirá com esta ferida aberta para sempre.”
Marina não fazia ideia do que se tratava, mas sentiu um calafrio a subir-lhe pela espinha. Com as mãos a tremer, abriu a carta seguinte.
“Lisboa, 1979.
Maria,
Não sei como contactar o teu irmão, e a única pessoa que pode saber onde ele está és tu. Diz-lhe que lhe perdoo. Não lhe quero mal. Prefiro ficar sozinha com a nossa filha do que tê-lo por perto num ambiente mau para mim e para a menina. Diz-lhe que lhe chamei Marina.”
Sentou-se no chão imediatamente. O coração saltava-lhe no peito. Alma, o nome da sua mãe. Só nesse momento percebeu. Ao seu lado, Ash olhava para ela sem entender. Começou a dar-lhe pancadinhas suaves no braço, com o focinho. Marina não reagia ao cão. Tirou o resto dos papéis de dentro daquela caixa. Não conseguia perceber quem teria posto aquilo ali, nem com que intenção. Sabia apenas que estava perante a história da sua família – uma história que ela desconhecia. Porque crescera com Alma, a mãe, e com Ricardo, o pai. Ou pensava ela que sim. Pegou na caixa, sacudiu as folhas secas que tinha agarradas ao casaco e dirigiu-se a casa. Nas paredes, as fotografias que contavam a sua história tinham agora outra luz. Outra sombra. Porque, aparentemente, contavam uma mentira.
Quero muito esta continuação!
Como lá foi parar? Era intencional que ela encontrasse? Porquê?
Em pulgas!!😊😊