A fortaleza de Theresienstadt remonta ao século XVIII e foi mandada erguer por ordem do imperador austríaco José II. Este local, na parte noroeste da Boémia, seria um local impenetrável para os inimigos. Pensada ao detalhe, num conjunto de fortificações de rigoroso traço, levou dez anos até ficar concluída. O nome nada possui de estranho pois foi assim apelidado em homenagem à mãe do imperador, Maria Teresa da Áustria, que governou no período de 1740-1780.
Tanto trabalho redundou num fracasso e no final do século XVIII o recinto estava obsoleto para a função inicial. Do forte planeado já nada aparentava e encontrou-se um outro caminho para o projecto, uma prisão militar política. Repartidos em vários blocos, mantinha a planta inicial e a carga pesada que havia herdado. Era um recinto que acolhia prisioneiros políticos e militares.
No século XX, voltou a ter uma nova chama, idêntica para o que foi planeado. Voltou a ser o centro das atenções ao ter nas suas instalações um prisioneiro famoso que dava pelo nome de Gavrilo Princip. Este nome poder ser estranho e até mesmo desconhecido, mas trata-se do estudante sérvio que deu um tiro no Arquiduque Francisco Fernando e esse acontecimento deu origem à primeira guerra mundial. Segundo os registos, morreu na cela número 1, de tuberculose no dia 28 de Abril de 1918. Na verdade o seu óbito ocorreu num outro local, num hospício. O seu corpo mirrado não fazia jus aos 19 anos oficiais, o que coloca questões pertinentes sobre o tipo de servícias a que foi submetido.
No dia 10 de Junho de 1940, a Gestapo apodera-se da fortaleza e adapta-a aos seus intuitos: uma prisão de alta segurança. Pouco trabalho havia a fazer uma vez que toda a zona se prestava aos intuitos dos dirigentes. No entanto, era necessário passar uma imagem que ilustrasse as boas intenções de quem estava a fazer o suposto bem em prol de outrem. No ano seguinte, a cidade de Theresienstadt, apesar das promessas ouvidas, é transformado num gueto. As muralhas deixavam de proteger e passavam a encolher, ou seja, não havia escapatória possível.
Com o lema comum “Arbeit mach frei” inscrito na entrada, era a cidade dos judeus, aquela que os nacionais socialistas lhes ofereceram para se regerem conforme assim o entendessem, uma cidade modelo onde tudo acontecia conforme as suas regras. Houve grande trabalho de propaganda no sentido de ilustrar, com filmes, como a vida era simples e alegre naquela cidade onde as actividades aconteciam com naturalidade e satisfação geral. Judeus, apenas judeus.
Claro que existia Auschwitz e Terezín teve um papel determinante. Era neste mesmo local que se fazia a escolha dos judeus destinados a Auschwitz. Não havia inocentes em todo este processo. Quem era seleccionado tinha o destino traçado e sem possibilidade de retorno. Era a morte certa que os aguardava com uma capa de leveza, de saída para um local ainda melhor onde a vida seria ainda mais desejada.
Todo o conjunto que recebeu o nome de Terezín transmite uma sensação de dor, de sofrimento, de aperto que entra pela pele e se acomoda na garganta. São gritos mudos que ficaram impressos nas paredes, no chão, nos tectos, no ar que ainda circula com a mesma indiferença de séculos. Quem o visita não fica indiferente aos chamamentos de quem o habitou no passado.
Apesar do bloco dos oficiais aparentar uma vida de luxo e de lazer, onde as cavalariças e a piscina, obras executadas por os que nunca puderam delas usufruir, o que acontecia com aqueles que “se podiam governar conforme entendessem” era o seu oposto.
Encerrados em blocos onde a dignidade e o respeito não ocupavam lugar, eram meros locais de depósito de pessoas que se acumulavam em recintos tão curtos e apertados que até o pensamento teria dificuldade em funcionar. Sem escapatória viviam num pequeno mundo onde reinava a tristeza e a desolação com capa de falsa alegria.
Os desenhos que as crianças faziam demonstram os seus mais profundos sentimentos, a revolta e a dor sentida. As cores são tão carregadas de amargura que o coração se encolhe de saber como a infância e toda a vida lhes foi roubada. Os nomes são aos milhares e mesmo que alguns não estejam escritos estão impressos no tempo e no espaço que os acolheu. Tudo a cor de sangue.
É bem verdade que quem visita um destes locais de dor não fica igual. Estive apenas umas horas, mas soaram-me a eternidade. Mesmo sendo no mês de Agosto, o frio sentia-se em todos os sítios. E para que a experiência fosse ainda mais real e poderosa, uma enorme chuvada inundou todos os caminhos impossibilitando que certos recantos estivessem acessíveis. Continuam lá, mas encolhem-se com tanta infelicidade que testemunharam.
A pequena localidade tenta voltar à vida, a uma normalidade que teima em regressar. Os apartamentos estão para venda, a preços bem inferiores de mercado, mas o estigma e as memórias ainda não conseguem fazer esquecer tudo o que se passou. Não deixa de ser uma zona simpática e com contornos de pequeno paraíso, mas o medo e a raiva ainda por lá habitam.
Hesitei se escreveria sobre Terezín. Esta crónica tem-me sugado algumas energias. Está lenta e dolorosa, mas tem que ser escrita. O mundo não pode fechar os olhos ao que aconteceu. A História não se pode apagar e os erros cometidos devem ser pedagógicos. Aquilo que os meus olhos viram foi apenas uma pequena fracção do que tantos viveram. Os sentimentos ficaram colados às paredes e jamais sairão.
Os museus apresentam os testemunhos daquele tempo incomum. Não são mórbidos, são pequenos arquivos de acontecimentos, retalhos de vidas que estiveram confinadas a um espaço apertado e que lhes foi oferecido como sendo a realização dos seus mais profundos desejos.
Confesso que as lágrimas me afloraram ainda antes de ter passado a porta principal. O cemitério que nos recebe, mesmo estando disfarçado de pequeno memorial, tocou-me bem profundo. Logo ali senti vozes infantis e anónimas que me diziam que não foram nem crianças e muito menos felizes. Uma dor tão aguda que me acompanhou durante o resto do dia provocando um enorme mau estar.
Como foi possível que tudo aquilo acontecesse e tantos estivessem de olhos fechados? Não se aprende nada. Para os que querem apagar a História fiquem cientes de que tal é impossível. Ela está sempre lá e os seus ensinamentos são preciosos. Abram os olhos hoje e agora que o politicamente correcto está a provocar cegueiras muito perigosas. E essas já não têm cura depois do mal feito.