Ser. Existir. Estar. O que diferencia os seres humanos dos outros animais? Os chamados instintos naturais estão amaciados e passaram a normas de conduta, o que leva a serem esquecidos ou mesmo ultrapassados. Somos diferentes. A nossa biologia não pode ser ultrapassada e por isso somos mortais, tal como os demais animais. Vamos analisar as nossas particularidades a fazer uma viagem interior, uma pequena introspecção que nos elucidará sobre a nossa espécie: a humana.
Somos seres imperfeitos. Nascemos incompletos e só nos desenvolvemos depois do parto. A nossa infância é exagerada e pode nunca ficar terminada. Um pequeno ser depende de terceiros, de quem o alimente e o oriente. Normalmente são os pais que desempenham essa função. Porém, esta lentidão, este tempo é benéfico para o desenvolvimento do cérebro, porque precisa de espaço para crescer. Por isso é tão importante que este período seja passado com pequenas experiências que têm o nome de brincadeiras. São elas que vão permitir ultrapassar os desafios que terão de enfrentar no futuro. A capacidade imaginativa também é promovida pois os episódios vividos nunca serão esquecidos.
Sabemos entender o que pode acontecer após a morte. Pensamos numa herança que se apelida de filhos. A nossa vida fica assim perpetuada através deles. Os laços que se criam tornam a vida mais suave e atenuam os impactos de todas adversidades que possam ocorrer. As fêmeas de quase todas as espécies podem procriar toda a vida, mas os humanos são limitados. Existem um tempo, curto, para que tal aconteça. Como tal a capacidade de cuidar de crias é imensa pois há uma enorme vontade de participar na educação dos seus descendentes. As famílias geram ligações que se irão manter posteriormente: os antepassados e a sua memória.
O homem quando caçava em grupo desenvolveu uma nova técnica a que deu o nome de confiança. Na caça dos grandes mamíferos, as várias frentes de ataque estavam distribuídas e os que estavam na dianteira, sentindo-se protegidos, puderam levantar-se com segurança e enfrentar a presa. A laringe, colocada próxima das cordas vocais, pôde, assim, desenvolver-se e permitir a capacidade de articular sons. O osso hióide, em forma de ferradura, fez a maravilha final. Como está solto deixa que as palavras fluam livremente. Inicialmente estes sons eram muito rudimentares, mas a passagem do tempo e a evolução permitiram que se apurasse até chegar ao que conhecemos.
O facto de conseguir controlar o fogo foi uma enorme revolução. Talvez a mais importante de todas. Com ela conseguiam iluminar-se, fazer da noite não um medo, mas mais uma etapa, defender-se dos predadores e inimigos, mover-se na escuridão, aquecer-se e cozinhar os alimentos. Como o calor era convidativo os grupos começam a reunir-se à sua volta. Os convívios entre as famílias bem como as uniões dos clãs começam à luz do fogo. Por outro lado, cozinhar passau a ser uma actividade que fornece alimento e prazer. Estes alimentos, por não serem crus, eram de mais fácil digestão, fazendo com que todos se sentissem melhor.
Para colmatar as baixas temperaturas não chegava o fogo. Inventaram a roupa e começa a diferenciação social. A tecelagem é desenvolvida bem como a curtição, o tratamento das peles. Os animais são aproveitados ao máximo, sendo as suas peles usadas para forrar casas e fazer peças de vestuário que ajudavam aqueles seres a enfrentarem as temperaturas mais baixas. Mais tarde as mesmas teriam outra função que era diferenciar homens de mulheres e posições sociais. Para completar essa escala ainda inventaram os adornos que podiam ser feitos em osso, pele, dentes e, mais tarde, de ouro e prata.
Os sentimentos e as sensações ganharam terreno na vida dos seres humanos. Se alguns podem ser encobertos, outros são demasiado óbvios para se conseguir disfarçar. Somos os únicos animais com a capacidade de corar, o que se pode tornar desconfortável. A vermelhidão pode ser sinal de vergonha, de raiva ou até mesmo de honestidade. O certo é que é uma manifestação involuntária de algo que é notada por todos. Pode ser um modo de alguém se integrar num grupo uma vez que se manifesta, à revelia de cada um. Somente o humano consegue esta proeza.
O facto de conseguir ser bípede, de ter a coluna vertebral direita, fez com que as mãos ficassem libertas. Após a traqueia bem posicionada, as mãos ganham autonomia e liberdade para serem usadas para outras actividades. Estas vão conseguir manobrar objectos depois de os fabricar. Os dedos têm todos utilidade e as terminações dos braços irão empunhar armas que servem para se defender assim como para atacar. São elas que produzem a comida e que pegam nos recém-nascidos, limpam as feridas e fazem carinhos. Por outro lado, se a força for mal direccionada e estiverem cobertas de raiva podem matar.
O nosso corpo está coberto de pelos, mas sem sempre são bem visíveis. Esta protecção inicial servia igualmente de camuflagem. Hoje as roupas protegem e aquecem, ou arrefecem, os corpos. Na sociedade moderna estes apêndices não são bem vistos e por hábito costumam ser retirados. A evolução fez com que os corpos de pele verdadeiramente nua fossem enaltecidos e venerados. Já não há necessidade de se passar despercebido pois agora é exactamente o oposto que se pretende: ser notado.
O cérebro, aquela máquina maravilhosa que funciona a uma enorme velocidade, quase vertiginosa, é um mistério. Não pesa muito, cerca de 2,5% do corpo total, no entanto estas 1400 gramas têm a capacidade de raciocinar e de elaborar muitos pensamentos complexos e ardilosos. Entre as chamadas heranças genéticas, aquelas que não podemos deixar de aceitar, porque são transmitidas automaticamente, podemos acrescentar a evolução que o ambiente nos vai prestando. E alguns cérebros são de tal forma perfeitamente funcionais que se podem intitular de génios.
Todas estas considerações são importantes, mas a mais pertinente prende-se com lugar que se ocupa na sociedade. O que o ser humano possui é um valor intrínseco que se chama dignidade, que o torna valioso. Torna-se possuidor de responsabilidades e obrigações e pode ainda tornar-se seu refém. Cria normas e regras e torna-se o seu próprio carrasco e juiz. Toma decisões, estabelece objectivos e guia-se pelas suas noções de conduta.
Por outro lado, encontra a espiritualidade, a sua plenitude e as respostas que busca para as suas questões. O homem é um organismo biológico, um corpo, mas ser uma pessoa, um ser humano total é bem mais complexo. Este reflecte sobre as suas acções passadas e tenta sempre melhorar as futuras. O homem desenvolve-se até ser uma pessoa, passando à posição de ser inteligente, ser racional e ser responsável, que se reconhece, que se vê em si mesmo.
Mais recentemente, percebeu-se que um ser humano é necessário que seja detentor daquilo a que se chamou de indicadores de humanidade. São eles a autoconsciência, o autodomínio, o sentido de futuro, o sentido de passado, a capacidade de relacionamento, a preocupação com os outros, a comunicação e a curiosidade. São estes os motores que accionam o intelecto e o motivam.
Perante estas características podemos afirmar que somos aqueles seres que foram presenteados com capacidades mágicas. Este saber estar, este viver tão peculiar e extraordinário, faz de nós um ser maior e superior aos demais animais. O homem é um ser social, inventa várias formas de comportamento, de mostrar que é capaz de ser e de voltar a renascer, tantas quantas as vezes que forem necessárias. Reinventa-se e é feliz.