Só te vejo através deste espelho

Deitada debaixo daquela árvore, lembrava-se de curiosidades sobre a vida e a morte. Estava descalça com os pés sujos da terra e o vestido rosa com nuances verdes de relva. O vento soprava leve, uma brisa fresca com cheiro a mar e a campo e a calor, e a temperatura ao sol era ideal para estrelar um ovo em cima de uma pedra – sim, ela já tinha tentado, e tinha sido bem-sucedida. Deitada, parecia que a árvore era ainda maior. Os ramos tinham poucas folhas vermelhas que ainda se agarravam com determinação, como uma velhota a quem o cabelo já caiu quase todo. Fosse Inverno ou Verão, aquela árvore estava sempre semi-nua, exibicionista imponente que demarcava o fim da aldeia e o começo do mundo.

Se olhasse para o lado, conseguia ver toda a aldeia e, ao fundo, um mar quase verde. Quando anoitecia e o céu ficava cor-de-rosa, o sol reflectia no mar preto e amarelo e nas casas, que ficavam com mais cores do que aquelas que existiam e que ela conhecia. Noutros mundos a lua nascia ao anoitecer, mas não naquela aldeia. Naquela aldeia, a natureza era livre de mudar. O tempo ali não passava, ou passava só quando queria. Ela olhava com carinho para aquele lugar especial que parecia a alegoria da paz, que parecia esconder inúmeros segredos e possibilidades. Que parecia digno de presente e de futuro. Nessas alturas, ela acreditava ser completamente feliz.

Olhou de novo para o ramo longo e forte que estava mesmo por cima dela. Perguntou-se se a mãe não se teria arrependido de saltar ao ver aquela imagem tão bonita. Acreditava que o sol, que transformava as casas em pequenos pontos da cor dos arco-íris, conseguiria dissuadir qualquer suicida. Bom, não qualquer… Talvez outros, mas não a teimosa da sua mãe.

Ouviu um assobio. Apoiou-se nos cotovelos até ver o cão aparecer, a correr com a língua de fora e um sorriso enorme nos olhos. Ela levantou-se e seguiu o cão, que, ao vê-la acordada, tinha começado a correr de volta para onde tinha vindo. Só a tinha ido buscar, para a guiar. O cão era o seu guia. De vez em quando olhava para ver se ela corria atrás dele, e não poucas vezes esbarrava contra algo ou alguém – um balde, um poste, a Dona Arminda.

Assim que pisaram o jardim, uma das avós saiu para a receber.

“Olá, vó!” disse, antes de parar e de apoiar as mãos nos joelhos, para descansar. Tinha vinte anos, mas por vezes sentia-se muito velha.

“Os pássaros hoje não gritarão ao sol” disse-lhe a velha avó, com um olho muito aberto e o outro semicerrado, em jeito conspiratório.

Ela sorriu e soube que era a avó Celeste. As avós eram trigémeas, e ela só as distinguia pelo tipo de conversa – a avó Luna era a mãe da mãe, e estava óptima; a tia-avó Celeste tinha sempre sido louca; e a tia-avó Estrela tinha ficado muda desde que o noivo morrera no dia do casamento. Entrou e deu um beijo na testa das outras avós, uma que estava sentada no sofá da sala, talvez ainda à espera que o seu grande amor voltasse, e outra que lhe segurava na mão. Não eram preciso palavras para saber e se ver o amor que corria entre elas.

Ela entrou num dos quartos e trancou-o. Olhou para o espelho e esperou. Ali estava ela. Com outra cara, outro corpo, mas ela sabia que era ela. Tocou no espelho com carinho. As saudades, por vezes, paralisavam-na. Do outro lado do espelho, uma criança. Corria, brincava, chorava, dormia. Ela sentia saudades e continuava a tocar no espelho, o dia todo. Não entendia porque é que a mãe tinha querido trocar o Céu pela Terra. Não entendia porque é que a mãe tinha querido reencarnar. Tocou no espelho e chorou, porque do outro lado estava a sua mãe. Do outro lado, a correr no corpo de uma criança, estava a alma da sua mãe.

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