Ficar parado no infinito. Assim era como ele descrevia o seu trabalho quando, por qualquer que fosse o motivo, lhe perguntavam o que fazia. Ele respondia um simples “sou uma estátua.” Face à confusão que instalava no interlocutor, ele apressava-se a acrescentar aquele “sou um homem estátua. o meu trabalho é ficar parado no infinito.” Ninguém conseguia então evitar perguntar porquê, para quê e outras vagas interrogações. “Tenho a paz que mais ninguém tem e o poder que esse mesmo ninguém sempre quis ter.” Ele tinha poucos amigos…
Não gostava que lhe chamassem homem-estátua. Era nome para aqueles que se deixavam levar pelo lado humano e interagiam com os transeuntes. Ele sentia-se apenas estátua quando naquele passeio se imobilizava. Ele era uma estátua e tinha um poder inigualável que levava uma pessoa a pensar se nele havia vida. Fazer as pessoas duvidar da sua existência mesmo quando face a face resultava no contra-senso de acabar por se tornar ignorado, esquecido, invisível. Quando isso acontecia, ele tinha o enorme poder de observar sem ser observado. As pessoas olhavam e não viam o homem, observavam-na de certo modo mas focavam-se na estátua e nunca no homem que estava dentro dela. Já ele estátua, observava para além do que simplesmente via.
O olhar elevado apanhava os incautos. Prostrado um pouco acima dos demais, captava durante o dia uma série de comportamentos que aos outros eram invisíveis. Por isso gabava-se de conhecer o que são as pessoas na realidade, e assim tinha poucos amigos. Observava os comportamentos rotineiros, os gestos mais banais, muito raramente algo estranho acontecia. Ela permanecia atento, um vigilante da raça humana nascido para registar a crueza de se ser uma pessoa. Captava os comportamentos de gente distraído na tarefa inconsciente de apenas viver. Durante o dia ali enfeitiçado numa redoma de completo isolamento, aquela estátua não era humana, era algo que estava ali para distracção e amiúde contemplação dos vivos que gingavam à passagem por ela. Na sabedoria que acumulou em anos de observações, estranhamente sentiu-se com desejo de viver.
Uma tarde começou como todas as outras. Prostrado no seu sítio, naquilo que ela era, ele estátua observava e estudava as pessoas. Via aqueles que passam sem se darem conta que ela estava ali. Uns corriam, outros andavam, outros circulavam de mãos dadas com caras metade. Via os mais descontraídos em velocidade nos seus skates ou bicicletas serpenteando no mar de gente. Sabia quem substituía momentaneamente o cigarro de fábrica por outro artesanal encrespado em teorias de voluptuosidade. Via-os embriagados no fumo que ingeriram a deslocarem-se a espaços de tempo inconscientemente definidos para um local ao longe. Via os mais descarados a sucumbir ao ardor da paixão com toques de mão no corpo da rapariga ao seu lado, sabiam o conselho de não o fazerem ali mas por vezes a consciência perdia-se quando se misturavam e lá surgiam os avisos quando não a polícia em missão de despudor. Testemunhava o estereótipo da mulher alta de patins, com os seus calções e biquíni, ambos demasiado pequeno para o corpo que tem. Percebe as personalidades nas cabeças que rodavam ao vê-las passar e também ele as seguia até lhe ser possível. Via as pessoas mais feias e as mulheres mais bonitas. Incontáveis vezes se apaixonou.
E depois via de perto os que com ela tentavam interagir. Uns colocando-se ao seu lado, outros por baixo procurando o seu segredo de aparente levitação. Ouvia risos, espantos, surpresas. Acreditava nos olhares que se fixavam em si. Percebia o som de moedas e o silêncio de notas a caírem sem nunca agradecer porque as estátuas não falam. Aceitava as quase constantes fotografias, sorria para elas na invisibilidade de ninguém perceber. Alegrava-se por ser um centro de atenções e por ver as pessoas bem dispostas depois de o conhecerem e o aceitarem como estátua..
Durante o dia captava emoções, sentimentos, olhares, sorrisos, alegrias, felicidades, tristezas, desconfianças. Aprendia o que era viver ao captar a essência da alma dos seres humanos. Via o Eu de cada uma daquelas pessoas, algo que muitos poucos conseguiam ver.
Ao início da noite com a rua a esvaziar-se de pessoas, a abandonar-se de vida, ele libertava-se da forte armação que o sustentava levitado. Primeiro um braço, depois o outro. Estendia as pernas até as deixar tocar no chão que mal recordava. Recolhia as notas e as moedas com que foi gratificado. Colocava as suas coisas num carrinho de mão e arrastava-o rotineiramente ao som de um fino chilrear até à sua carrinha.
Dava por findo o dia no bar que já o conhecia ali perto, com a frescura de uma cerveja a acariciar-lhe os lábios e um novo isolamento porque ao fim de mais um dia, continuava sem amigos.