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Quando a política não é só poder

Num programa de comentário político que, ultimamente, tem ocupado mais tempo do que os próprios intervenientes políticos, um dos comentadores afirmou que a diferença entre esquerda e direita se esbateu, uma vez que partidos de direita já incorporavam elementos de esquerda.

A ideia parece sedutora, mas é enganadora. É verdade que os termos direita e esquerda tiveram diferentes significados ao longo do tempo e, mesmo entre nós, a sua definição irá mudar consoante a pessoa a quem perguntarmos.

Os termos direita e esquerda não se resumem somente a causas pelas quais lutar, mas a diferentes modelos de sociedade. A causa da liberdade pode facilmente ser defendida por qualquer espectro político, mas um modelo de sociedade baseado na liberdade pode encontrar resistência num determinado campo político que privilegia o controlo dos cidadãos em nome da ordem.

Esta distinção entre esquerda e direita iniciou-se no rescaldo da Revolução Francesa. Os que apoiavam a tradição e a conservação da velha ordem absolutista estavam sentados ao lado direito do rei; por outro lado, os que defendiam o progresso, emancipação e igualdade, estavam sentados ao lado esquerdo. Ou seja, conservadores e tradicionalistas, à direita, e progressistas, à esquerda.

Liberdade, igualdade e fraternidade são os valores primordiais da esquerda, a partir dos quais brotam outros. Portanto, não existe uma aproximação entre esquerda e direita, porque uma sociedade onde impera a igualdade entre todos não é a mesma onde a família onde se nasce dita o futuro dessa pessoa. Uma sociedade que privilegia a punição exemplar, ainda que se de um pequeno crime se trate, não é a mesma que procura restaurar e reinserir quem, em consequência de uma sociedade injusta, tenha sido empurrado para o crime.

Mesmo que possam existir pontos de convergência, cada um dos lados tem objetivos diferentes. Se utilizarmos o exemplo da desigualdade social e na posição frente a ela por parte de cada um dos campos, veremos que para a direita é algo natural e, portanto, sem necessidade de intervenção; para a esquerda, toda e qualquer desigualdade social é injusta e, portanto, deve ser corrigida. Isto não é admitir que devamos levar a igualdade ao extremo, tal como satirizado por Jerome K. Jerome, mas que a causa da desigualdade é artificial e sem fundamento.

Para alguém de esquerda, nunca será visto como normal a economia permitir que um sem-abrigo durma sob as montras de uma loja de luxo ou que famílias se perpetuem na pobreza por diferentes gerações, enquanto outras parecem nunca sentir os efeitos das crises. Admitindo, porém, que ambos os campos políticos coincidam em refletir sobre alguns problemas sociais, as soluções dificilmente se aproximarão.

Neste sentido, a ênfase da esquerda na defesa de um Estado que garanta a prestação alargada e de qualidade de serviços públicos como a educação, visando fornecer as competências de aprendizagem, independentemente da origem socioeconómica do aluno, não será partilhada por um campo político, como a direita, que prefere não intervir, sob a falácia de que é necessário dar liberdade ao indivíduo para que se esforce e vingue pelo seu próprio punho.

Nunca será possível que um partido de esquerda e um de direita coincidam a ponto de ser impossível discernir a diferença entre ambos ou que estas se esbatam o suficiente para serem próximos politicamente. Podem, obviamente, discutir os mesmos problemas, mas um partido será sempre a representação legal de um determinado grupo que partilha os mesmos interesses e, consequentemente, o mesmo destino. Cada partido responde aos interesses dos grupos ou classe que representa, sendo, na maioria das vezes, interesses inconciliáveis com os de outros grupos ou classes sociais. Quem queira negar isto, decide voluntariamente ignorar um dos motores da História, observável em qualquer sociedade que tenha como fundamento a propriedade.

A realidade das ideologias políticas é muito mais complexa do que o exercício que aqui tentei fazer. A diferenciação foi apresentada, não para resumir, mas salientar algumas diferenças marcantes. 

A luta política, longe de ser somente uma disputa por poder, é, em essência, o lugar onde se definem os valores e princípios que ordenam e orientam uma sociedade. Assim, falar em direita e esquerda, não se refere somente a questões económicas, culturais ou de outra ordem, mas ao modo como se dão as relações sociais.

Num momento em que o mundo político se torna demasiado complexo, saber a origem das diferentes posições políticas permite descomplicar o suficiente desta complexa trama, mediante uma contextualização das origens histórica e filosófica de determinadas posições.

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