Hoje, nalguns círculos, especialmente liberais, a palavra meritocracia aparece como a cura para uma sociedade decadente e economicamente desigual. Com a mesma facilidade com que se apontam os problemas de Portugal, logo, qual elixir sagrado, se sugere que se deveria pôr em prática uma sociedade meritocrática.
Uma das definições de meritocracia é:
Um sistema social, sociedade ou organização na qual as pessoas detêm o poder devido às suas habilidades, não devido ao seu património ou posição social.
A promessa da meritocracia é bastante sedutora: cada um alcança o ponto até onde se esforça. Aparentemente, nada poderia ser mais justo do que isto mesmo, afinal, cada pessoa é a responsável última pela sua condição. O ideal meritocrata até dá para ser resumido numa fórmula: inteligência/talentos + esforço = mérito.
Alguns problemas, contudo, começam logo a surgir e, como Amartya Sen referiu: “claridade não é uma das virtudes da ideia de meritocracia”. O que quer dizer, propriamente, mérito? Como é medido o mérito? Em que situações se está em condição de mérito?
Em termos genéricos, e tendo em conta a corrente dominante, remete para um sistema social, no qual os benefícios e poder devem ser atribuídos a quem consegue subir os degraus da escada social do sucesso. Evidentemente, o mérito enquanto reconhecimento de uma capacidade, produtividade ou excelência num determinado domínio não se deve confundir com um sistema social de distribuição de recursos económicos e poder.
A meritocracia representa um sistema legitimador de uma plutocracia, governo pela elite rica, enquanto assenta em pressupostos irrealistas de uma competição justa. Legitima uma certa hierarquia social baseada no esforço e na inteligência individuais, tidos como inatos ou passíveis de adquirir, excluindo o contexto sociocultural de pertença, ao mesmo tempo que sobrevaloriza certos tipos de status social ou profissional. Finalmente, toda a ideia da meritocracia gira em torno de um mito que tende a obscurecer desigualdades sociais ou económicas entre os diferentes indivíduos.
Não existe competição justa entre os diferentes indivíduos numa mesma sociedade. Assumir que todas as pessoas estão em condição de igualdade é uma falácia. Indivíduos de famílias com melhores condições económicas podem ingressar os seus filhos em atividades extracurriculares, como aulas de música, explicações personalizadas ou programas de preparação que têm em vista a entrada em universidades prestigiadas, nacionais ou internacionais, ou, inclusive, a participação em atividades de voluntariado internacional. A procura por este tipo de atividades, por vezes, é indicativa do grau de qualificações académicas dos pais, representando pessoas com nível universitário.
De um modo concreto, o nível de escolaridade dos pais, mas também a sua situação económico-profissional são elementos que se correlacionam com a desigualdade nos resultados académicos dos alunos, nomeadamente, a correlação entre melhores resultados académicos por parte de alunos provenientes de famílias com maior nível de qualificações académicas e condições socioeconómicas mais favoráveis, sendo observável também o oposto.
Portugal é o quinto país da União Europeia com o salário médio mais baixo, se tivermos em conta o custo de vida. Na verdade, o que temos assistido é a uma aproximação entre o salário mínimo e o salário médio, resultante dos sucessivos aumentos do salário mínimo, que alcança cada vez mais trabalhadores. Os dados indicam que 21% dos trabalhadores recebem o salário mínimo, especialmente entre trabalhadores do sexo feminino, além de que ter um trabalho nem sempre é garantia de conseguir um teto sob o qual dormir.
Com um contexto familiar destes, será que os elementos dos estratos mais pobres continuam na pobreza porque não são inteligentes? É possível, sequer, defender que são pobres porque querem? Será que não se esforçaram o suficiente? E o que dizer dos trabalhadores não qualificados, muitas vezes essenciais para o funcionamento da sociedade, que, apesar de muito trabalharem, não conseguem ascender na estrutura social?
Enquanto os indivíduos provenientes de estratos sociais mais elevados conseguem estudar em melhores universidades e ingressam em empregos bem remunerados ou, se necessário, emigrar para outros países, o que dizer daqueles que não conseguiram estudar mais do que o ensino obrigatório e têm de sobreviver com salários baixos e em competição com imigrantes por postos de trabalho? O que dizer a uma geração que ainda só vivenciou crises e vive sob estagnação de rendimentos desde que nasceu?
O ideal de meritocracia, que está incutido nos diferentes setores sociais, tem servido para justificar uma ordem social caracterizada por injustiça e desigualdade social. Quando um indivíduo atinge posições sociais favoráveis a uma melhoria da condição material, e assume que essa subida é produto do seu esforço e inteligência, tende a formar-se arrogância e um sentimento de merecimento e legitimidade para colher o máximo de recursos, económicos ou outros, enquanto quem não subiu a esse patamar é olhado com desdém, pela sua falta de inteligência ou esforço. No reino da meritocracia, é-se rico porque “certamente” o merece e é pobre quem, por sua “culpa”, não se esforça o suficiente; por isso, merece estar numa posição de subalterna desvantagem.
Na grande maioria das vezes, o sucesso não é resultado de um esforço individual, mas de uma conjugação de fatores externos ao indivíduo. Quem teve a sorte de coincidir com um CEO de uma empresa, pedir-lhe uma vaga e consegui-la, deve o sucesso ao seu mérito ou a fatores externos que lhe permitiram ter acesso privilegiado a uma cunha? Quem escolhe em que país nascer? Terá as mesmas condições de partida um indivíduo que, apesar de inteligente e esforçado, nasceu na Faixa de Gaza e outra pessoa que tenha nascido e crescido na Área Metropolitana de Lisboa? E que dizer de uma criança que cresceu exposta à violência familiar ou numa família monoparental, onde a mãe é ausente porque precisa de dois trabalhos para conseguir pagar as despesas? Estará este indivíduo em pé de igualdade com quem cresceu com num lar com empregada doméstica?
A promessa falhada do sucesso e prosperidade para todos, fundando-se num ideal meritocrático, tem contribuído para criar um conjunto de pessoas ressentidas contra uma elite política que identificam como corrupta, ao serviço de interesses nem sempre claros, e contra uma classe tecnocrata que impõe uma agenda neoliberal sob a aparência de neutralidade ideológica, tratando pessoas como meros números numa qualquer folha de Excel. Infelizmente, são populistas oportunistas que colhem os votos de todos os que perderam mais com a globalização económica e a introdução de políticas neoliberais.
A premissa individualista que carateriza o capitalismo não contribui para uma sociedade melhor ou mais justa. A História demonstra que é coletivamente que se pode construir algo. Como poderiam os grandes nomes da ciência criarem teorias sem o trabalho coletivo de todos os outros cientistas e pensadores que os precederam ou com quem se envolveram em debates? Como poderia o iPhone ter sido criado sem todo um trabalho prévio de investigação custeado por fundos públicos?
A lógica individualista e de esforço próprio de cada um por si coloca-nos ao nível dos animais em estado selvagem, ignorando ser a nossa capacidade de trabalhar coletivamente que nos permitiu construir civilizações, desenvolver conhecimentos complexos e enfrentar os desafios de sobrevivência. A colaboração, a empatia e a solidariedade são os pilares que, ao longo da História, possibilitaram o progresso.
Longe de ser um modelo justo, a meritocracia serve apenas para justificar um sistema que perpetua a desigualdade e ignora as condições estruturais que afetam os diferentes indivíduos. Se queremos, de facto, construir uma sociedade mais justa, é essencial que passemos a valorizar a cooperação e a solidariedade, reconhecendo que o verdadeiro progresso não surge da competição individual, mas de colaboração.