Primeiro começaram as palavras aguerridas nas redes sociais, onde tudo e todos eram acusados de corruptos, pelo que era necessário limpar Portugal. Não se fez nada, defendendo que as redes sociais funcionam em lógicas próprias e servem apenas (dizem eles) para desabafos.
Depois, veio um partido que se tem assumido como um dos porta-vozes do que há de pior numa sociedade, reafirmando que toda a classe política é corrupta e que se torna necessário varrê-la da política. Agora, na Assembleia da República e nos diferentes meios de comunicação, passámos a ouvir e a ver uma trupe de circo a brincar à política.
Após tudo isto, temos assistido a um conjunto de agressões cada vez mais frequentes por parte de grupelhos da extrema-direita que, sentindo-se legitimados pelo espetáculo proporcionado pelo Chega, saem cada vez mais confiantes à rua para impor o terror. Até fizeram manifestações e vimo-los a desfilar pelas ruas da capital, enquanto entoavam slogans bafientos.
Os diferentes grupos sociais sempre estiveram na rua para fazer frente a este avanço de retrocesso. Da parte das autoridades, pouco, ou nada, foi feito. Alegavam que o que se passava nas redes sociais ficava nas redes sociais, que todos têm direito à liberdade de expressão e manifestação. Até um capítulo dedicado à violência da extrema-direita foi removido do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI 2024), sabe-se lá sob que pretexto.
Em 2019, escrevi no Megafone (Público) um artigo em que expunha o perigo de tolerar e dar liberdade de expressão a quem é intolerante e quer restringir a liberdade. Na época, Portugal ainda era o povo dos brandos costumes. André Ventura tinha sido eleito no mês anterior, mas ainda era inexpressivo. No artigo, baseado no paradoxo da tolerância de Karl Popper, argumentei que o espaço da livre opinião só é permitido a quem partilha dos mesmos princípios. Ou seja, precisamos ser tolerantes com os democráticos, mas intolerantes com quem quer destruir a tolerância.
E este é o dilema da democracia. Em nome da liberdade de expressão, um dos valores de qualquer democracia, devemos permitir que tudo seja pronunciado no espaço público? A defesa da liberdade de expressão numa democracia deve ser firme, mas não ingénua: é legítimo proteger esse direito fundamental, desde que se imponham limites claros quando essa liberdade é usada para incitar à violência, à discriminação ou à destruição dos próprios valores democráticos.
Assumimos que em democracia cada pessoa escolhe com base numa racionalidade que lembra o Homo economicus. Isto é, cada pessoa escolhe o que é melhor para si. Se voto no candidato A, então, significa que é com este candidato que tenho maiores hipóteses de ser beneficiado, em detrimento do candidato B.
Este posicionamento é tentador, mas esconde algo importante: nós não conseguimos manter sempre este nível de racionalidade. Somos facilmente enganados, por exemplo, com as fake news que apelam diretamente às nossas emoções e não ao nosso intelecto. Por outro lado, ser-se racional ao ponto que o Homo economicus exige, obrigar-nos-ia a ter o conhecimento total de todas as hipóteses, a fim de conseguirmos escolher realmente o que seria mais conveniente. Na maior parte das vezes, quem vota num partido nem sequer leu o seu programa eleitoral, portanto, muito menos lerá os programas eleitorais dos partidos concorrentes. É verdade que a ideologia supre parte desta lacuna, mas, ainda assim, seria necessário ter um conhecimento bastante amplo destas mesmas ideologias e, também, dos pressupostos que as sustentam.
Em democracia, a não ser que tenhamos um elevado sentido de virtude cívica, amplo conhecimento dos diferentes atores políticos e ideologias que os alimentam, somos facilmente manipulados. E afirmar isto não é adotar uma posição paternalista relativamente ao eleitorado. Mas não podemos manter uma atitude ingénua perante ideologias que já se demonstraram perigosas o suficiente para darem origem a guerras, exterminações de povos ou diferentes grupos sociais.
Desde que o discurso extremista foi tolerado no espaço público, temos assistido a uma progressiva campanha de ódio que começa a atacar imigrantes, mas, também, portugueses. As notícias que dão conta dos planos do Movimento Armilar Lusitano, que ia desde atacar a Assembleia da República, a, também, atacar o Chefe de Estado e outros políticos, são muito graves.
É preciso ser muito claro: não podemos ser tolerantes com quem pretende tornar a intolerância regra e, muito menos, podemos dar espaço público a ideias extremistas que provocarão o fim da democracia.