Porto Covo

A ilha estava tranquila, imponente ante o sol que ao largo se escondia envergonhado. Parámos na estrada onde – percebemos mais tarde – tantos outros o fazem para captar o momento.

Seguimos para a Herdade do Pessegueiro, depusemos a tralha (mínima para um fim-de-semana) e fomos atrás do jantar. Nova paragem, sentido contrário, a mesma dança entre sol e ilha – bachata, talvez? – mais umas fotos e Porto Covo mostrou tudo o que não fui capaz de imaginar pela canção. Vila incaracterística, atarracada e pequena para tanto campista, surfista e freakalhada, Uma arquitectura em desconstrução (destruição?) e, há que admiti-lo, contendo zonas de grosseiro desleixo (na Rua Carlos Tê, se a ideia era homenagear o homem por trás da letra, mais valia pichar o azulejo com o nome, tal o esgoto que aquela amostra de alcatrão parece).

Depois, a baía ao cair da noite e a paz a invadir-nos (não é só um privilégio poder ver o sol esconder-se sob o mar: é um milagre). De volta à vila, a rua frenética de restaurantes e lojas de bugigangas surfisto-espirito-alternativas, muita gente à espera para comer – este era o Porto Covo de que a Sofia se lembrava – e os deuses que nos acompanharam no instante de dez minutos em que aguardámos por uma mesa no Zé Inácio.

Depois do passeio na praça – roupas coloridas, rastas e tatuagens (temporárias, porque isto é para turistas) – voltámos pela estrada sem berma nem luz até à herdade. E foi então que o tempo curvou dezoito anos e pude percorrer de novo a Estrada de Santiago. Foi no mesmo mês de Agosto, em 2003, que a minha visão abarcou pela primeira vez tantas estrelas, do outro lado do Alentejo. Não havia mar em São Pedro do Corval mas havia, no céu nocturno que o embalava, o mesmo mistério, a consciência da pequenez e o fascínio pelo tanto que está para lá do que vemos, por descobrir, a mente solta junto aos pontos luminosos que não são de hoje mas de há milhares ou milhões de anos, janelas para o passado desde um presente em que nada daquilo pode já existir.

No dia seguinte as nuvens tomaram conta do acontecimento e a praia fez-se difícil: tentámos o Queimado (mais rocha que areia), e depois a Samoqueira (mais bruma que rocha). Caminhámos e coincidimos de novo – depois da imagem indefinida que ambos retivemos da vila – que a música de Crosby, Stills, Nash, & Young assente tão bem quando se percorre as estradas do litoral alentejano. Through Here Quite Often, Just a Song Before I Go, Don’s Say Goodbye ou Cowboy of Dreams. Foram necessários duzentos quilómetros para redescobrir a excelência do quarteto, herdeiro de Woodstock, cujas composições o Saldanha Bento me gravou num best of (sua selecção) há dez anos, e que ainda hoje continua a tocar no meu carro.

As estradas de areia, quase ao abandono, se num primeiro momento me levaram a vomitar os habituais impropérios, logo reconsiderei – será que prefiro os empreendimentos fofinhos, imaculados, a preços de cagão? – e a minha preferência fez-se óbvia. Tão óbvia. Ou será: cada vez mais óbvia?

Um pequeno passeio a dois pela herdade fechou a tarde na perfeição. Em conversa ou em silêncio, de mão dada ou à solta, as férias cada vez mais são a ausência de preocupações junto de quem amamos. Como se tudo em volta ganhasse mais luz ao explodir neste olhar.

Fomos à Ilha, restaurante na praia em frente à ilha, junto ao forte de Nossa Senhora da Queimada. Chegámos cedo, presenciando novo milagre – era a hora deles –, nova dança, desta vez uma valsa que se prolongou até o frio entrar na pista e nós no restaurante. Foi já do interior que assistimos ao fim do espectáculo. Um passeio nocturno por Porto Covo onde, apesar de a temperatura ter baixado um pouco no termómetro da algazarra, ainda ouvimos parte do concerto de uma artista de rua no largo da Igreja de Nossa Senhora da Soledade – Stand By Me, Porto Covo, Rosa Sangue e Frágil.

Regressámos no domingo, após o (segundo) pequeno-almoço no Largo Marquês de Pombal – o mesmo do “concerto” – e um último passeio pela vila, cada vez mais adaptada ao meu olhar. Mais dias aqui estivesse e talvez levasse Porto Covo para a vida. Assim, guardarei no baú dos locais a repetir. Primeiro estranha-se; depois entranha-se. Resolvemos (resolveu a Sofia e eu concordei para, no fim da jornada, reconhecer como ela tinha razão) percorrer a costa praia a praia, descobrindo a beleza e fealdade de cada lugar – São Torpes, Sines, Praia da Costa Norte, Lagoa de Santo André, Melides (onde almoçámos com vista para o mar, para a lagoa e para tudo o que vivemos), Galé, Pero Pinheiro, Carvalhal, Comporta, e por aí acima até Tróia, onde fechámos o ferry para Setúbal. A experiência desta mini road-trip a dois agradou-me mais do que antevia. Foram quase seis horas até casa (os CSNY deram entretanto lugar aos Eagles) onde deslizámos Alentejo acima ao longo de uma costa quase deserta, num dia bonito.

Mesmo sem praia, basta a melhor companhia, um lugar diferente e toda a vida que trazemos para fazer um fim-se-semana.

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