Ali estava ela. Já tinha lido, num certo grupo, sobre a sua existência e deixou-me com um sentimento estranho. Uma senhora com muita idade, que devia estar em casa no conforto do lar, vendia uns objectos de plástico. Têm préstimo, claro, mas não é comum ver tal venda assim, como se fosse o mais vulgar de encontrar na rua.
Ali estava a senhora. Encostada a um pilar, com olhos de ver no passadoredo, uma dor de muitos dias e um coração de chorar. Chovia e talvez o ambiente fosse propício a sentimentos mais fortes. Os alguidares, de todas as cores, eram paletas que não traziam alegrias. Uns maiores do que os outros, alguns eram emparceirados por tons, contudo soavam a natais passados.
A senhora era a imagem da dor. Quase duas horas e ainda não tinha comido. Tinha uma sandes na mochila e insisti para aceitar, tal como a única nota que tinha comigo. Recusou inicialmente, talvez por vergonha, mas acabou por aceitar. Educação e delicadeza numa tão gigante dor. Já não sei se eram lágrimas ou pingos de chuva o que senti, mas era molhado de interior que se agigantava.
Dei-lhe um abraço. Mais lágrimas, mas estas bem diferentes. Agradeceu de todas as formas que encontrou, um improviso muito sentido. Soltei-lhe a alma e fiquei a saber tudo. Tudo que é nada e que fez questão de partilhar com uma estranha. Talvez seja mais fácil assim, se não existirem laços que saibam medir o tom ou o comprimento da dor. Media-a como gigante, numa régua de lamentar.
O filho morreu recentemente e os alguidares eram dele. Quer vender a sua presença, o mesmo filho que encontra todos os dias na garagem e que quer deixar ir. São de saldo, mas têm uma carga bem forte que os envolve. Tem 86 anos e não quer nada, tem tudo para seguir caminho para o fim, a estrada que não termina.
Este último Natal terá sido muito duro. Ele não está e não tem mais ninguém. A mesa deve ter tido um vazio tão grande como um buraco negro que puxa todos. No entanto a sua voz é muito clara; que cabeça bem arejada e decidida. Tem tudo menos o essencial. Falta o amor, o combustível para viver, acordar todos os dias e ser feliz.
Pede-me que leve um alguidar. Não posso, pois, ainda vou trabalhar. Entendo o que me pede, a ajuda para mitigar a dor. Quanto menos os vir, mais livre se deve sentir. Sofre de uma solidão muito aguda, a recente doença urbana e civilizacional. O espaço entre dias pesa-lhe e precisa de muitos abraços e conversas.
Ali estava ela. Não são os alguidares que a motivam, são os breves momentos que quem passa lhe dispensa. São muitos anos e falta ainda resolver-se. Um filho é um pedaço que não se consegue abandonar, deixar ir. Um sonho que se realiza e que acaba por terminar. Um filho é tanto e tão pouco. É tudo.
Ali estava a imagem da dor que se adensa na época de reunir a família. Nada sei dela, mas o que vejo é suficiente para entender que vai, aos poucos, roendo a vida para encontrar o seu rumo, um caminho que não magoe tanto. Viver é uma tarefa do caraças! Que grande porrada que se leva. Qual é o motivo, se houver, para os filhos morrerem antes dos pais?
Ali estava ela. A senhora dos alguidares, a que chorou no meu ombro e me deixou um pouco da sua dor. Os alguidares são de plástico, uma ninharia que até polui os rios e oceanos, mas, na verdade, são a marca de um desejo que se realizou e murchou. Não há justiça no mundo.