Desta feita achei que talvez conseguisse escrever ao meu passado.
Não sou saudosista e aprendi com o tempo que o passado serve para recordar lições e o futuro será a base de construções sólidas que se aprendem hoje, um farol cuja luz se acende, porque é muito mais fácil saber por onde seguir.
Fases há que a nostalgia bate. Tempos correm que nos remetem à necessidade de profundos mergulhos nas pessoas que outrora fomos. A vida é feita de renascimentos, assim me parece.
Muitas vezes, em situações de dúvida, permito-me um pequeno exercício, visualização precisa de quem acha que há utilidade em diálogos internos: na indecisão de dúvida entre dois caminhos, questionava à Carla velhota, cheia de rugas e sapiência no olhar, que conselho me daria ela naquele momento, qual a melhor escolha? E ela dava-me sempre a sua melhor palavra, a melhor das decisões.
Se calhar, neste preciso momento, em que deambulo por entre ideias, ela também me diria: que viajar pelo tempo que passou exige grande coragem, que o passado sempre nos define quem verdadeiramente somos, que as nossas pequenas imperfeições surgiram dos mais ínfimos traumas que esquecemos ou temos dificuldade em relembrar e que as grandes lições que aprendemos fizeram de nós os grandes homens e mulheres que somos hoje.
A Carla velhota diria, com grande afinco e ternura no olhar, que esperas aí sentada enquanto olhas o tempo, vai buscar a caneta e o teu caderno e recorda-te, relembra tudo o que já passaste e viveste, escreve-te a ti que já não és, quem finalmente, tu és hoje.
Eu, a Carla de hoje, percebo nitidamente que isto de nos avaliarmos, pensarmos, sentirmos, não é tarefa fácil. Que dói recordar mas que também alegra o peito e que ele se enche de ar quando ao percorrermos o papel, as palavras saem da caneta de encontro ao que já não existe mais. Ao que é doloroso demais reviver. E solto gargalhadas e tristezas e coloco pontos finais e virgulas e no final de tudo talvez continue com a mesma sensação de que o passado é útil mas nos coloca sempre pontos de interrogação.
A Carla velhota ri-se. Ri-se com carinho. Conhece-me bem. Também ela, ao falar comigo, percorre as páginas de uma vida que já passou. Congratula-me. Sabe que não é tarefa fácil.
Ao fechar o meu caderno, depois do que me reli e viajei na maior das viagens, sei finalmente que afinal não dói assim tanto. Que é útil. Existe, nesta tarefa, um certo alívio. Respira-se fundo, esfregam-se os olhos mas o peito está mais leve. A mente menos confusa. A alma limpa.
É necessário saber-se em que ponto se esteve e onde se está. Porque não se sabe em que ponto se estará nem daqui a um minuto, mas, se persistir em saber como fui e como aqui cheguei, já é meio caminho ganho.
Quase que aposto que a minha Carla velhota está a sorrir agora, de orelha a orelha. Assim como eu.