Outono.
Cheiro a frio e a castanhas assadas, pestanas molhadas com gotas de chuva, folhas amarelas e castanhas debaixo das botas. Cheira a frio e a quente ao mesmo tempo, e confundo o cheiro do Outono com o do Inverno, com o cheiro a Natal. Penso que é igualzinho, mas acompanhado de um cheiro a luzes brilhantes, ou a fritos doces com canela, ou do cheiro a música, a fantasia e a alegria. Assim que forçam as luzes cintilantes às vitrines esquecidas, já consigo cheirar o Inverno e o Natal, mesmo sendo Novembro. Odeio o Natal.
Debaixo das botas que cobrem os meus pés frios transformandos num azul gelado, as folhas fazem ruído, estalam com a minha passagem, morrem debaixo dos meus pés, sem piedade. Por algum motivo esse ruído traz-me uma tristeza profunda, e mal posso esperar para chegar a casa e meter-me debaixo da manta com o aquecedor ligado. Esquecer o mundo.
Passam por mim algumas crianças com as suas galochas pequeninas, cor-de-rosa e vermelhas e azuis, e debaixo dos pequeninos pés também as folhas estalam. Um folhicídio imenso na Avenida. Uma das crianças tem um chapéu de chuva do Poupas da Rua Sésamo. Sorrio.
“Vem brincar, traz um amigo teu…”
Entro no metro quente, com cheiro a calor falso, calor corrompido, a suor e perfume e hálito de quem lavou a boca mas não comeu durante muitas horas. Hálito de fome. Não quero que suem para cima de mim, não quero sentir esse grito desesperado de estômagos a reclamar comida, e sustenho a respiração. Saio na paragem seguinte e vou o resto da caminho a pé.
“Tu vais poder também ensinar como se vai até à Rua Sésamo…”
Canto, sem me aperceber, a música que entretanto não me sai da cabeça. Mas quando as pessoas olham para mim, rio-me sozinha deste lapso social. Paro por segundos, para depois retornar de novo, sem consciência. Será que seríamos mais felizes se fosse normal cantar na rua? Respiro o ar gelado, que me queima os pulmões e sinto saudades do Verão. Não gosto particularmente do Verão, mas um cheiro qualquer faz-me lembrar quando o casal Beja trazia canas de açúcar da plantação no Alentejo, e a nostalgia prende-se com a memória de toda a família com canas de açúcar, a absorver todo o doce até já só sobrar piquinhos de madeira na língua e nos dentes, que se tirava da boca ou cuspia como se fosse um cabelo incomodativo. Não sei se tenho saudades do Verão ou da família. Ou dos dois.
Supiro. Cheira de novo a Natal, porque de uma pastelaria qualquer vem o cheiro a açúcar canelado, a gulodice infantil e a calor familiar de rabanadas acabadas de fazer. Semicerro os olhos ao chegar à conclusão que sábado vou fazer rabanadas, ou scones, ou crepes, ou algo que adoce esta alma perdida que hoje parece concentrar-se na falta de nada, no fim de qualquer coisa, na morte dos objectos. Será do Outono? Sábado. Esfrego as mãos como um vilão pensando em planos maléficos. Ainda hoje é Segunda-feira, mas já brinco com a fantasia dos Sábados se perpetuarem no infinito, com o seu cheiro a bolos, o seu tempo ameno e a sensação acolhedora de pertença, de filmes ridículos e de ilusões que não se concretizam mas pelas quais ansiamos.
Chego a casa e ligo imediatamente o aquecedor, que me acolhe como um animal de estimação. Todos os pensamentos se dissolvem nas ondas quentes que percorrem a sala. A minha alma acalma e esqueço o Natal e a Segunda-feira. Só me resta o cheiro doce e a lembrança nostálgica da família, e o Sábado perpetuado numa brincadeira mentirosa, mas que agora não me importa.
Outono.
Quase Inverno.