O que significa “refundar” o Estado?

Nos últimos meses, a refundação do Estado tem sido o ponto central dos debates políticos nacionais, mas o que significa, afinal, a refundação do memorando? Quais as suas reais implicações na vida dos portugueses? Será este outro passo em direcção a uma crise mais profunda? Será a refundação sinónimo de uma reestruturação do Estado? São várias as perguntas, porém, as respostas são vagas.

Sabe-se apenas que esta teria de estar concluída até ao final de Fevereiro, antes do início da 7ª avaliação do programa de assistência financeira a Portugal. Numa entrevista à TVI, após a aprovação do Orçamento de Estado 2013, Passos Coelho afirmou que o governo tem o objectivo de “discriminar”, na próxima avaliação do programa de assistência financeira, as medidas conducentes à meta de redução de quatro mil milhões de euros nos gastos públicos, para implementação entre 2013 e 2014. Estes cortes deverão incidir sobre a despesa primária do Estado, excluindo os encargos com a dívida. Segundo a explicação de Pedro Passos Coelho, 70% da despesa pública inclui a soma das prestações sociais, gastos na Saúde e Educação (50%) e despesas com pessoal (20% da despesa total do Estado). Para o primeiro-ministro, só a refundação do Estado pode evitar um segundo resgate. Defende, no entanto, que a reforma das funções sociais do Estado deve ser feita em função do que os portugueses podem pagar, reiterando uma ideia já anunciada pelo ministro das Finanças.

Recorde-se que, na opinião de Vítor Gaspar, a revisão das responsabilidades do Estado revestem-se de carácter “fundamental”, acusando os governos dos últimos 30 anos de prometerem aos portugueses mais funções do Estado do que aquelas que podiam ser pagas. Foi isso que levou os portugueses a “esperarem mais do Estado do que aquilo que estão dispostos a pagar”. O ministro garantiu que a redefinição do Estado é crucial para o sucesso do programa, pois só esta revisão irá permitir o corte de quatro mil milhões de euros na despesa pública. Sem este corte, Portugal arrisca-se a entrar na mesma crise da Argentina na década de 90, sendo obrigado a um ajustamento “abrupto e desordenado”, acredita Vítor Gaspar. “A reforma do Estado será uma transformação para melhor e não uma compreensão, ou redução daquilo que existia até agora”, sublinha o Primeiro-Ministro.

Riscos de uma refundação irreflectida

Será possível delinear uma verdadeira reestruturação do Estado social em apenas cinco meses? É possível redefinir as funções do Estado social sem haver consenso político? Recorde-se que o PS recusou a participação na discussão sobre o novo modelo de Estado social. Mais importante ainda, será um corte de quatro mil milhões de euros na despesa pública equivalente a uma reforma do modelo do Estado social?

Em relação aos argumentos apresentados pelo governo, elevam-se muitas vozes discordantes relativamente ao tópico da refundação, até porque a maioria das pessoas acredita que um corte de uma quantia tão avultada na despesa pública não significa uma reforma estruturante do Estado. Marçal Grilo afirmou, recentemente, que não acredita que se possa fazer uma refundação das funções sociais do Estado baseada somente na necessidade de cortar quatro mil milhões de euros na despesa pública. Para o administrador da Fundação Gulbenkian e antigo Ministro da Educação, o termo refundação parece “demasiadamente pretensioso e um bocadinho absurdo. Não se refunda o Estado fazendo um corte de quatro mil milhões. Pode-se fazer até um corte de dez mil milhões de euros, depois de se repensarem as funções do Estado. (…) O importante neste debate é definir quais são as funções do Estado e, nessas funções, a que é que podemos chamar conquistas civilizacionais, porque aí o Estado não deve recuar de forma a poder vir a ter problemas que o país tinha há 30, ou 40 anos”. Marçal Grilo alerta ainda que se o governo avançar com o referido corte “desta forma, vai ter repercussões muito graves no médio e longo prazos”.

Já o constitucionalista José Gomes Canotilho mostra-se disponível para compreender a racionalização e reorganização do Estado com menos despesas, mas coloca totalmente de parte ter como “modelo de competitividade a China, ou a Índia, onde isto corresponde não só a baixos salários, mas também a baixos direitos”. O também constitucionalista Carlos Blanco de Morais criticou o governo por não apresentar nenhuma ideia concreta sobre a refundação do Estado. “Temo, numa simplificação discursiva, que a referida refundação seja apenas para justificar cortes de quatro mil milhões de euros, com critérios casuísticos e sem modelo definido”, disse o professor catedrático e assessor da presidência da República.

manifestaçãoContudo, a discórdia relativamente a este corte de quatro mil milhões de euros não surge somente entre políticos e especialistas, mas, principalmente, entre os principais visados desta medida, os portugueses. Aliás, João Semedo, do Bloco de Esquerda, afirmou não ser preciso “estar muito prevenido para perceber que a guerra total que o governo declarará ao país e aos portugueses, se insistir em cortar quatro mil milhões de euros no Estado Social, não deixará de acentuar e de incendiar ainda mais o protesto e o descontentamento popular”. Como tal, o movimento “Que se lixe a troika” vai realizar a 2 de Março um novo protesto, em várias cidades do país, para contestar as medidas de austeridade do governo. O governo contra-argumenta, falando em poupança e não em corte. “O valor de que estamos a falar é uma poupança estrutural e é natural que, se essa poupança estrutural for para 2014, determinadas medidas possam vir a ter efeito já este ano e esse efeito será positivo para o exercício”, disse Carlos Moedas, secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, no final de um conselho de ministros.

Nada disto indica, contudo, uma real e significativa reforma do Estado, visto não haver uma verdadeira reflexão e análise sobre as funções sociais do Estado. Parece sim que esta é apenas uma nova medida de austeridade, que denuncia um agravamento da crise económica vivida em Portugal.

 

 

 

 

 

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