O perigo de não saber parar

Há dias o meu corpo gritou. Sentia algumas tonturas, o raciocínio turvo e um mal-estar geral, que me obrigaram a parar.

No início da tarde, peguei num livro e sentei-me no sofá, não sem um terrível sentimento de culpa a flanar em segundo plano. O trabalho acumulava, os prazos apertavam. Depois da leitura, tentei discernir a causa daquele revés na produtividade, já que não me parecia existir um motivo válido para tão grande cansaço.

Ao analisar os últimos meses, percebi que há muito não fruía de mais de um dia de folga semanal e que, não raramente, trabalhava — trabalho — desde cedo na manhã até tarde na noite: acumulo a atividade profissional e uma pós-graduação com o apoio às aulas online e aos trabalhos dos miúdos, a manutenção da casa em serviços mínimos, a confeção das refeições em horários desencontrados, as idas às compras, os passeios com o cão, e uma infinidade de outras minudências burocráticas, pessoais e profissionais, que sou incapaz de delegar ou recusar. Somem-se a isto as noites mal dormidas, os músculos retesados pela ansiedade de cumprir todas as tarefas diárias. Instala-se ainda o amargor de, em meio da azáfama, falhar a concretização de um ou outro dever, como se a perfeição fosse imperativa.

Para os que trabalham por conta própria, o tempo investido traduz-se em maiores ganhos monetários — consequentemente comida na mesa, já que os luxos permanecem longe do alcance da maioria —, e na esperança de alcançar o sucesso. Para os que trabalham por conta de outrem e agora em regime de teletrabalho, conquanto sujeitos a interrupções caso tenham dependentes a cargo, as pausas exigidas nas instalações do patrão, com recurso a argumentos assentes na lei laboral, transformaram-se numa corrida à cozinha para arrebanhar duas bolachas; o tempo despendido a fazer a cama parece um desperdício quando há trabalho por fazer mesmo ali à mão; a duração das permutas entre casa e escritório converteu-se, naturalmente, em horário de faina.

Se os benefícios para os colaboradores são ambíguos, no sentido em que o conforto do lar é apelativo, mas pode ser traiçoeiro, as empresas também não escapam. No terceiro trimestre de 2020, graças ao trabalho remoto, registou-se um aumento na produtividade e um decréscimo nas despesas relacionadas com imobiliário, conforme mostra este estudo da Capgemini. Mas o que parece ser uma boa notícia, se abordada pela rama — por de alguma forma amenizar os beliscões ou arrastões nos dividendos das empresas, procedentes do imposto isolamento social —, pode vir a desencadear nova hecatombe. O entusiasmo inicial de trabalhadores e patrões culminará com os primeiros a sucumbir à exaustão, e com a consequente queda na produtividade — motivada pelo esgotamento e agravada pelo cansaço pandémico —, assim como no aumento das baixas médicas. Não estará já a acontecer?

Para quem trabalha a partir de casa, especialmente se é apaixonado pela profissão que exerce, é fácil contaminar momentos de lazer, aproveitar para planear mentalmente as tarefas semanais entre dois episódios de uma série, esse luxo de domingo. É fácil sentir que trabalho não é trabalho. É fácil e arriscado não saber parar.

Quão mais alto poderá gritar um corpo se ignorarmos os avisos? Em que momento a corda corroída rebentará? No extremo, este esticar de horas fará um ultimato: a perfeição ou a vida. O equilíbrio é, em todas as áreas da vida, a chave universal para a felicidade.

Em jeito de nota final e confessional, partilho convosco que este artigo foi parcialmente escrito na cama, ao acordar, e concluído na secretária, por ser o último dia do prolongamento do prazo de entrega concedido pelos mais-que-pacientes editores desta página. Sentado junto à cadeira, o meu cão implorava por um chichi.

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