O monstro

Corria o mês de Fevereiro do ano 2000, quando ao dia 17 Cavaco Silva explanou, em artigo de opinião publicado no Diário de Notícias, considerações várias sobre o modo como estava a crescer desenfreadamente a despesa pública. Fundamentou-as no conhecido modelo económico de Leviatão, segundo o qual o Estado é visto como um monstro de apetite insaciável, alimentado pela necessidade do poder político em distribuir benesses generosas para aumentar a respectiva popularidade, satisfazendo os interesses de certos grupos bem organizados, que assim delapidam os impostos pagos por todos os contribuintes.

Afirmava Cavaco, a propósito do Orçamento de Estado para o ano 2000, que “o mostro anda à solta, atinge um tamanho alarmante e está incontrolável (…) As despesas públicas apresentam um crescimento enorme e correspondem a mais de metade da produção nacional no ano.”

Exortava os partidos da oposição a reduzirem o fluxo de combustível que alimentava o monstro, votando contra o aumento da carga fiscal, impedindo que as receitas das privatizações fossem utilizadas para financiar as despesas públicas e pedindo ao Ministro das finanças que elaborasse um novo orçamento com vista ao emagrecimento do monstro.

Concluía o seu artigo referindo ser perigoso adiar aquela dieta e recear muito que “o monstro atinja uma tal dimensão que o combate, depois, não se faça sem muitos feridos quer do lado do Governo, quer do lado dos partidos da oposição, sem falar nos estragos causados à economia nacional e ao bem-estar dos Portugueses.”

O titular da pasta das Finanças era Joaquim Pina Moura, ministro do governo de António Guterres que vencera eleições em 1995 e tinha conseguido reeleger-se em 1999, sempre sem maioria absoluta. Em Dezembro de 2001 a perda estrondosa das eleições autárquicas levou Guterres a abandonar o governo para evitar a formação de um pântano político. Durão Barroso ganhou as legislativas seguintes em 2002, proclamou que “o país está de tanga” e iniciou uma titubeante caça ao monstro.

Cavaco sabia do que falava. Mas a cabeça do monstro fora criada pelo seu governo, quando em 1989 deu à luz o novo sistema retributivo da função pública. Foi inovador para a época, reforçou fortemente a auto estima dos trabalhadores da função pública, inaugurou o tempo em que os respectivos salários médios suplantavam os do sector privado, mas estava alicerçado em previsões irrealistas de crescimento económico que não se concretizaram no futuro e era desprovido de recursos para resistir às sucessivas crises que lhe sucederam.

Ninguém teve a coragem, ou talvez a ousadia, de encarar o problema de frente, reconhecer o erro e corrigi-lo na raiz. Ao invés disso, todos os governos pós Guterres se atarefaram a desferir golpes mais ou menos cegos e a eito no monstro, destruindo as carreiras e gorando as expectativas dos funcionários, a pretexto da redução do défice orçamental, da contenção da dívida e da gestão das crises.

Hoje, o monstro tem já múltiplas cabeças. Os funcionários públicos, cansados de arcar com as culpas de um sistema deficiente e impossível de sustentar, seguiram os prestimosos conselhos de Passos Coelho e desde 2011 continuam a emigrar para países que lhes pagam o triplo, encabeçados por enfermeiros, médicos e professores. Muitos recém formados já nem ousam iniciar funções em Portugal, pois rapidamente celebram contratos vantajosos no exterior. E algumas profissões, como a de professor, deixaram de ser opção à entrada na faculdade. O país continua de tanga, agora pela mingua de recursos humanos qualificados, que não consegue reter ou formar, por ausência de incentivos coerentes.

Para compreender como tudo começou, regressemos ao início de 1989, antes da aplicação do novo sistema retributivo à função pública. Nesse tempo as tabelas de vencimento dos funcionários eram construídas por letras, de A a U, correspondendo a cada uma delas um valor salarial. Ao vencimento acresciam as diuturnidades, um suplemento que variava consoante as letras, atribuído por cada cinco anos de serviço e até ao máximo de cinco diuturnidades. Um funcionário com 25 anos de serviço teria, portanto, direito a cinco diuturnidades. Outro, com apenas 10 anos de serviço, teria duas. Apesar do respectivo valor não estar indexado ao vencimento, cada uma delas correspondia, aproximadamente e em média, a 4% da remuneração base. Proporcionavam assim um acréscimo médio de 20% do vencimento, ao fim de 25 anos de serviço.

O novo sistema retributivo iniciado em Outubro de 1989 revolucionou aquele modelo e, nas carreiras, cada categoria passou a ter uma progressão salarial automática, com mudança de escalão de 3 em 3 anos, que ao fim de 30 anos de serviço permitia, em muitos casos, mais do que duplicar o vencimento inicial.

Com algumas excepções, o valor do vencimento inicial não teve um incremento assinalável pois em 1989 subiu em média 12%. Mas os escalões indiciários das grelhas de vencimento tinham entre si diferenças médias de 10 pontos (algumas de 5, outras de 10, 15 e mais). Onze anos volvidos após a sua implementação, os custos da progressão salarial automática já tinham disparado 40%, sem contar com a actualização da inflação. Foi então que Cavaco Silva alertou para o crescimento do monstro; contudo não o identificou adequadamente.

Entre 1986 e 2001, o Produto Interno Bruto cresceu 86,11%, a uma taxa média anual de 3,96%, facto a que não foi alheia a atribuição dos fundos comunitários destinados à modernização da economia portuguesa. Este período correspondeu às governações de dois Primeiros Ministros: Cavaco Silva, que até ao fim do seu último governo, em 1995, impulsionou o crescimento da economia em 48,26%, numa taxa média de 4,02% ao ano; e António Guterres que até 2001 viu a economia crescer 25,53%, a uma taxa média de 3,86% ao ano.

De 2002 a Junho de 2011 a economia portuguesa estagnou, tendo crescido apenas 4,4%, a uma taxa média de 0,45% ao ano. Correspondeu ao período de governação de Durão Barroso, Pedro Santana Lopes e José Sócrates.

O descontrolo da dívida soberana, do défice público e o insuportável aumento dos juros que o Estado se viu obrigado a pagar nos mercados internacionais levou a que se recorresse à intervenção externa. A partir do 2.º semestre de 2011, já com Pedro Passos Coelho como Primeiro-Ministro, a economia portuguesa viu o seu PIB desacelerar-se rapidamente, tendo caído 5,5% até ao fim de 2013 e atingindo uma queda total de 5,45% até ao final do 2º trimestre de 2014, a um ritmo médio anual de 1,85%.

Os anos de governação de António Costa, desde 2015 e até final de 2022, mesmo considerando as perdas motivadas pela crise pandémica do sarscov-2, ocorridas em 2021, deram ao país uma recuperação sustentada, com um crescimento médio anual de 2,09%.

Foi o governo de José Sócrates que, entre 2005 e 2009, já em desespero de causa contra o desenvolvimento do monstro, desferiu os golpes que mais descaracterizaram as carreiras da função pública. Introduziram-se obstáculos para dificultar a progressão nos escalões de vencimento. Alterou-se o sistema de pensões, eliminando a maior parte dos regimes especiais que permitiam a aposentação mais cedo e uniformizando as regras de cálculo e a idade da aposentação com as normas em vigor para a segurança social. O incentivo do funcionário público poder aposentar-se com 36 anos de serviço e 60 de idade desapareceu.

Criaram-se carreiras, “normalizadas e assépticas”, em que a designação das categorias profissionais deixou de ter correspondência com o respectivo conteúdo funcional. Esta situação deslocou o foco do processo habitual de identificação do profissional com a função a desempenhar, para a identificação com uma diferente e confusa designação, baseada em conceitos abstractos, que tendem a afastar o trabalhador da função e promovem a indiferença e alheamento do mesmo.

Exemplifiquemos para melhor se compreender: um auxiliar de acção médica, um auxiliar de ensino e um profissional administrativo passaram a designa-se simplesmente de “assistente operacional”. Uma denominação uniforme completamente desligada dos conteúdos funcionais concretos de cada carreira. A carreira de enfermagem que ao tempo tinha cinco categorias (enfermeiro, enfermeiro graduado, enfermeiro especialista, enfermeiro-chefe e enfermeiro supervisor) passou a ter apenas duas: a de enfermeiro e enfermeiro sénior, sendo certo que ninguém se identificou com tal mudança atabalhoada. Uma das razões porque o Serviço Nacional de Saúde passou a enfermar de extremas dificuldades de gestão desde 2009 foi a desmotivação profissional deste seu pilar fundamental, em marcha acelerada desde então.

Finalmente, o governo de Passos Coelho veio colocar a cereja no topo do bolo, somando à já descaracterizada função pública, acentuados cortes nos vencimentos, congelamento total de carreiras e o aumento do horário de trabalho de 35 para 40 horas semanais. Ainda tentou por diversas vezes ensaiar um corte drástico e permanente nas pensões, mas felizmente o Tribunal Constitucional inviabilizou essa possibilidade. O monstro foi travado. Eu diria mesmo, anestesiado. Porém quis-se atingir um pássaro com uma caçadeira e fulminou-se o bando.

António Costa iniciou timidamente um processo penoso de reconstrução da auto estima dos trabalhadores da função pública. Tratou-lhes as feridas provocadas pelos cegos tiros de caçadeira, mas não fez ainda o essencial. Manteve o monstro contido nos seus limites, mas não concebeu outro sistema, racional e credível, onde todos se reconheçam naturalmente. Sem alternativas fiáveis, os trabalhadores continuarão a reclamar os direitos que lhes foram retirados.

Faltam incentivos adequados ao serviço público que o diferenciem do restante. O serviço público e o serviço privado prosseguem objectivos diversos, devendo complementar-se. Então que se distingam ao invés de se confundirem ambos, numa diluição turva onde imperam as leis do mercado. O serviço público deve nortear-se pela filosofia e pela ética e proteger-se do mercado; se funcionar apenas de acordo com a oferta e a procura certamente um dia irá colapsar e privatizar-se. Faltam carreiras diferentes, com uma categorização funcional atraente, financeiramente exequíveis, desprovidas de entraves e com expectativas claras de progressão e promoção. Falta apresentar propostas novas ás pessoas e falar-lhes a verdade olhos nos olhos.

De que serve a um trabalhador ter uma carreira em que sabe de antemão lhe está quase vedado um conjunto de escalões de vencimento? Que expectativas pode ter face ao que lhe foi prometido no passado e cerceado anos depois? E há que resolver o grave problema dos baixos salários em início de carreira. Claro que o país não pode equipara-los já aos da restante Europa desenvolvida, mas pode aumentá-los e somar-lhes outros incentivos, onde a redução da idade para acesso à reforma não deveria ser algo a descartar.

Um estudo simples (comparando num período de 30 anos a progressão hipotética de um funcionário numa carreira actual e em outra modificada) facilmente demonstra que podemos aumentar o vencimento inicial das carreiras em cerca de 40%, permitindo em cada categoria apenas cinco escalões de progressão automática de 5 em 5 anos, com diferenças de 5 pontos entre cada um deles. Seria um sistema desprovido de complexidade, financeiramente exequível e análogo ao das antigas diuturnidades, sem aumentar o peso da massa salarial global, considerando uma carreira de 30 anos. Pode criar-se também uma forma de premiar o mérito excepcional, com regras claras, cujo acesso se faça por concursos a abrir periodicamente. O mérito excepcional é algo que por natureza abrange um universo não superior a 10% dos trabalhadores, num determinado período de tempo. Todos lhe poderiam aceder, querendo, apresentando projectos ou curriculum profissional. Seriam escolhidos os melhores. Mas quem não quisesse submeter-se a critérios de mérito excepcional saberia que tinha um carreira na sua frente, sem artifícios nem atropelos, bastando-lhe para isso ser um bom e dedicado trabalhador.

Claro que seriam necessários exercícios de criatividade suplementar, na elaboração de normas de transição dos actuais profissionais para as novas carreiras, de forma a não serem prejudicados. Contudo, certamente não haveria problema algum em ser-lhes contado todo o tempo de serviço e até criados alguns escalões provisórios de vencimento a extinguir quando vagarem.

O monstro ainda continua vivo e arrasta-se penosamente pelos corredores. Tem que ser eliminado através do diálogo social franco. Agredi-lo à punhalada ou com tiros de caçadeira apenas agrava o problema, ainda que se tente disfarçá-lo com roupagens que o tornam menos repelente.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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