Há sempre uma personagem na nossa vida que deixa um rasto de boa disposição e saudade. Uma delas foi um semi-parente, que eu tratava por tio. Era filho do marido da minha avó, o segundo, que esta avó era muito à frente e não havia ninguém que não o conhecesse. O epíteto foi-lhe atribuído depois da morte da sua irmã, que ele nunca conseguiu aceitar. Chorava desalmadamente e passava as noites no cemitério, junto à campa dela, a conversar. Com o tempo foi desenvolvendo outros hábitos peculiares que despertavam, nos outros, admiração e respeito.
Sempre me lembro dele como um homem imponente e fora do comum. Era casado com a Tina, uma mulher que sabia cozinhar tudo e muito bem. A cozinha era um caos, mas ela entendia-se. Passámos horas maravilhosas naquele local e os seus ensinamentos ainda hoje me são úteis. Morava com eles a mãe dela, que tinha sido vendedora de legumes, na praça. Ficou-lhe a alcunha de Lagarta. Era uma velhinha muito bem-disposta e simpática. Morreu muito velha, o que veio provar que os legumes dão anos de vida.
Na sala onde habitualmente passava as tardes, havia de tudo. Era um bric à brac que me fascinava e deliciava. Tudo espalhado, como que de propósito para chamar a atenção. Tinha uma lata redonda, com uma tampa metálica, que costumava estar fechada. Ui! Despertava-me mesmo a curiosidade! Um dia abri-a. Tinha fotos de mulheres nuas em posições estranhas. Eu não tinha mais de 3 anos e aquilo encantou-me. Hoje não haveria quem não lhe batesse por me deixar ver pornografia, mas, felizmente, que aqueles tempos eram outros. Não fiquei chocada e passou a ser normal o que acontecia naquela casa.
Ele não me proibia nada. Defendia que as crianças deviam ser educadas em liberdade e aprender a fazer as suas escolhas. Foi o que aconteceu com a sua filha e ela foi sempre uma pessoa muito bem resolvida. O primeiro cigarro que fumei, com a tenra idade de 3 anos, foi-me oferecido por ele. Ia morrendo com o fumo, mas aprendi a lição. Só voltei a fumar aos 13 anos, mas isso faz parte daquela fase, estúpida, da vida que se chama adolescência. Também me deixou provar o bagaço e outras bebidas alcoólicas. Aí sim, foi mesmo pedagógica e funcionou até hoje.
Contudo, o que eu mais gostava era de ouvir as histórias dele que, cá para mim, eram grandes invenções. Eu bebia as suas palavras e fazia de tudo para o acompanhar para todo o lado. Tinha lugar cativo no futebol, na praça de touros (que na verdade nunca fui) e no cinema. Este então era um delírio! Ao ar livre e com o som mais fanhoso que se possa imaginar. Que belos filmes que vi e como me divertia com as suas explicações. Mudava o enredo, lia as legendas mal, de propósito e afinal acabávamos por ver o filme que ele realizava e não o que passava. Ele era assim.
Um jogo de futebol assistido com ele era algo de épico. Todos os jogadores mudavam de nome, as suas mães e avós eram chamadas ao barulho (sim, ele usava muitos palavrões e insultos, mas era-lhe natural, sem maldade) e no intervalo ainda levavam um carolo. Convém dizer que ele era o patrono do clube e de tantas outras instituições. Soube sempre aplicar bem o dinheiro e em boas causas. Eu ia com ele mais pelo espectáculo que ele dava e não pelo futebol, que nunca gostei.
A palavra dele era lei. Um dia, muito mais tarde, numa parte oposta do distrito, fiquei sem dinheiro para regressar. Disse ao senhor dos bilhetes (isto passou-se há anos!) que ia para aquela cidade mas não tinha como pagar. Ele olhou para mim, com olhar de esta está a gozar comigo e depois lembrei-me que o nome dele tinha muito peso. Quando disse que era sobrinha dele tudo mudou. Só faltou levar-me ao colo. Ele era, de facto, uma referência em todo o lado.
Lidava com a morte como ninguém. Tinha estipulado que, quando morresse lhe cantariam as janeiras e a minha mãe passaria a noite, à porta do local onde estivesse (nada de igreja!), sentada numa cadeira, a contar anedotas. Foi fácil a parte da minha mãe, mas cantar as janeiras em Junho é mais complicado. Mas fez-se a sua vontade.
Eu fiquei particularmente triste, porque ele era um dos meus heróis vivos. Já tinha alguns anos e comia e bebia de maneira não muito adequada, mas, como ele dizia, a vida era dele. Viveu-a bem, ao seu sabor e ritmo. Hoje já não existe o tal cinema nem a praça de touros e o clube de futebol integra a 1ª divisão. Ele chamava-se Henrique, mas poucos o tratavam pelo nome, nem eu. Era o tio e muitas crianças também o faziam. A actual autarquia está a a ponderar dar o seu nome a uma das artérias da parte nova.
Onde está agora? Não sei, mas foi enterrado junto à sua amada irmã, que chorou toda a vida e fez questão que a outra irmã, nascida do segundo casamento do seu pai, tivesse o mesmo nome, mas inverso. Ele lá sabia o que dizia.
Brincas com as palavras e com a Vida!
Parabéns Guidinha!
Belo texto…!