Nunca gostei de insetos

Nunca gostei de insetos, sempre me causam uma repulsa quando os vejo amontoados. Não importa se ao vivo ou o por imagens. Sinto que vou ser atacada por eles, meu corpo será tragado por aquela horda diminuta e eu vou desaparecer.

Até mesmo para escrever esse texto, se serrar os olhos e fingir não olhar para a folha em branco ou para a página no computador, sinto meu corpo arrepiar e minha cabeça coçar com a possibilidade desse medo irreal.

Não sei se há nome científico para esse tipo de fobia, sei que ao ler o livro da espanhola Layla Martínez esse medo reacendeu e outras imagens surgiram.

Caruncho livro editado em Portugal pela editora Antígona, dentro do projeto “Sementes de Dissidência”, é um romance primordialmente feminista, um romance de terror. Um estilo de terror que a muito não esbarrava, que não causa o galope desesperado do leitor para saber quem é o maestro das atrocidades, ou melhor, não é um terror que consumimos entre copos e tremoços.

Caruncho é um livro pequeno, mas que leva o TERROR para dentro do nosso subconsciente e, ao menos, para mim me fez ter pesadelos, me fez até mesmo acordada criar imagens tão aterradoras como no simples ato de descascar uma maçã para minha filha.

Talvez seja, porque a história no romance seja contada e vivida por mulheres, isso pode ou não mexer em quem esta do outro lado, sendo essa pessoa mulher, mãe, transpassada por vozes ancestrais, e muitas outras coisas que vamos tateando e encontrando de pontos em comum com as personagens do livro. Que apesar de se passar em uma Espanha longínqua a uma migrante brasileira, tens suas “parecenças”, visto que o Brasil é uma colcha de retalho de colonizações e violência. Na minha ancestralidade, minha avó daria um nome muito mais poético aos retalhos, chamá-los-ia de “amor-em-pedaços”. Mas, não há possibilidade de ser amor, quando estamos lidando com um destino “fado”, anos de machismo, violência de classe, silenciamento e corrosão. Que se mesclam em uma mesma história que não sabemos precisar voz, em Caruncho uma mulher transgeracional: avó, filha, neta vivem e respiram os factos e fatídicas fortunas que as acompanham. Presas uma a outra entendida para além de ser quem são presas a CASA, casa essa protagonista, coadjuvante, antagonista e cúmplice da monstruosidade denunciada pela autora, que muito além de falar sobre a violência fala sobre a vingança relacionada a perspectiva de classe.

O que fazer para ir contra a bestialidade da vida? Virar besta também? Transfigurar-se em algo temido?

É o que é a casa, as personagens para um leitor leigo que ache graça na capa do livro. Mas se der atenção a essas palavras:

“Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta e retorce-lhe as entranhas até a deixar sem fôlego. A minha mãe dizia que esta casa nos faz cair os dentes e nos seca as vísceras, mas a minha mãe saiu daqui há muito tempo e não me lembro dela.”  

Vais querer saber porque caem os dentes e secam as vísceras dos que entram pela soleira. Sensação comum daqueles que estão nascem, crescem e envelhecem em um ambiente que se torna mais que paredes e conta histórias no mofo das paredes, da goteira do teto, dos vultos que passam e nos acostumamos sem temê-los. São os residentes outros que ou moravam ali e foram dentados pelo edifício, ou foram recolhidos como animais vadios deixados abandonados a beira da estrada. Que adensam o ambiente de mais Carunchos, essas proles de suas proles que a muito corroeram os ossos, sugaram o sangue, destruíram as vigas das estruturas.

Mas que no romance de Layla traz no sedimento que compõe os corpos e a casa uma advertência contra o sofrimento que comove e, ao mesmo tempo, endurece como narrativa, entretanto, faz uma nota de atenção a importância das vozes omitidas pelos vencedores, as vozes silenciadas pelos escravocratas. Um tempo esgotável e inesgotável. Sabemos que o livro, a história contada pela autora tem fim, mas as reverberações do recorte que o livro tem, perpétuas vozes que conhecemos e desconhecemos em vários momentos históricos.

Se encostarmos os ouvidos as paredes de casa, seremos assombrados ainda hoje pela violência exercida pelos poderosos, pela situação económica, pelo patriarcado e pequenas vinganças silenciosas que alguns loucos têm a audácia de cometer.

Nota: Este artigo foi escrito seguindo as regras do Acordo Ortográfico do Brasil

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