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As velas ardiam nos teus olhos

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As velas ardiam. E ardiam-me os olhos de te olhar à luz das velas. Não sei se nesse momento aquilo que ouvia era a cera a derreter no calor ou os teus pensamentos a correrem desenfreados por detrás dos teus olhos. Os teus olhos eram colossais, olhavam para o escuro como quem vê ou adivinha ou procura. Talvez fizesses isso tudo enquanto olhavas para pedaços do quarto que não existiam, que estavam cegos para nós, perdidos na noite.

Por algum motivo pensei “como somos efémeros”. Foi certamente alguma ligação que a minha mente fez, que a minha memória encontrou, quando tudo o que vi em ti foi eternidade. “Como somos efémeros, dolorosamente efémeros.” E tu, ali, tão eterna.

Mexias os lábios silenciosamente. Os lábios soletravam palavras que eu não conseguia ler, como se fossem segredos só teus, como se falasses de ti para ti e te tivesses esquecido de me deixar fazer parte de quem tu eras.

Fechei os olhos para ouvir melhor a música que o fogo fazia. Fechei os olhos e senti uma dormência e um desespero como um manto. O meu coração cavalgava e eu tremia. Ainda tinha coração ou era só uma força de expressão? Deixei-me ficar, quase triste, quase a chorar, entre o castigo e a catarse. Não te podia tocar. Não tinha adiantado tentarmos. Tentei sentir-te na minha cegueira: em que pensarias? Ainda pensarias? Estarias a olhar para mim? A ver-me, como eu te consigo ver?

Abri os olhos e observei-te através das velas. Continuavas a olhar para o escuro. Pareceu-me que as tuas lágrimas reflectiam as chamas, mas podia estar enganado. Os dois tínhamos os dedos em cima do tabuleiro de Ouija, concentrados, a tentar chegar até ao outro. E por momentos esqueci-me de qual de nós tinha morrido.

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Rosa Machado
Curiosa e fascinada pelo que não compreende, bicho dos livros e criadora compulsiva de hipóteses mirabolantes. O tempo não existe quando há conversas filosóficas sobre nada, gargalhadas dos amigos, abraços a animais, viagens pelo mundo e todo o tipo de arte.

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