landscape photo of New York Empire State Building

Nova Iorque

Regresso ao Futuro

Uma hora antes do início, a fila contornava a esquina com a 50ª Rua, prolongando-se até se perder na 7ª Avenida. Não queríamos acreditar que toda aquela gente se predispunha a rapar frio – pelos 0 ºC – mas assim aconteceu e nós, como bons turistas que não queríamos perder pitada da experiência do american way of life na Big Apple, juntámo-nos à carneirada. O aviso alertava Weapons not allowed. Num repente de arrepio, senti-me muito mais seguro.

O fim de uma tarde convidativa ficava lá fora, no reboliço nova-iorquino e, sentados na plateia, a Sofia e eu aguardávamos. A história, – reminiscência recriada da infância em forma de alegria – Marty, Doc e o DeLorean tomaram conta das duas horas e meia que ali estivemos dentro. E o final apoteótico soprado pelos jovens nos assentos atrás; Amazing! Amazing!, e era mesmo amazing!

De volta ao breu luminoso após o espectáculo, constatámos num uníssono silencioso que só mais tarde partilhámos, que era demasiado tudo: ruído, cor, luz, sirenes, movimento, um carrossel infinito de painéis publicitários pela Broadway a rasgar a Times Square e excêntricos que se distribuíam pelo nosso trajecto – um corpo com duas máscaras do It, o palhaço do terror, uma no rosto e outra na nuca, fazia flexões na barreira de uma obra junto de uma coluna que berrava música martelada para marcar o ritmo.

Só que os americanos e a América são assim: vibram por tudo, mas sobretudo por nada. É outro mundo aquele onde eles vivem, e a nossa condição de turistas conferia-nos a doce ambivalência de estarmos dentro de um simulacro de feira popular, gozando em simultâneo do ponto de vista do observador do documentário BBC Vida Selvagem.

Os americanos regressam ao futuro e ao passado, viajam pelas múltiplas dimensões de uma existência alucinante na urgência de construir referências, e no processo, acabam por fazer do próprio processo uma referência para um estilo de vida muito próprio, mas no qual eles se reconhecem. Uma infantilidade que lhes cai bem por ser autêntica.

Regresso ao Futuro foi a escolha perfeita para a nossa primeira noite em Nova Yorque. E se vacilei ao passar pelo Radio Music City Hall, a mítica casa de espectáculos entre as ruas 50 e 51 que me soava do cinema dourado de quarenta e tantos e às locuções radiofónicas do final dos dias da rádio, sobretudo depois de perceber que naquela noite – e só naquela – actuava Frankie Valli e os The Four Seasons, a Sofia fez valer a sua posição Prefiro ver o Regresso ao Futuro. Na minha habitual indecisão, eu queria o impossível – os dois espectáculos.

É também por estes desbloqueios que estamos juntos.

Serenata à Chuva

Insinuou-se disparado para o céu, um no meio de muitos, o mais alto, icónico, poderoso, mal saímos na Penn Station vindos do JFK. Sob um véu nebuloso, o Empire State Building impressionou-nos como a primeira memória gravada para a vida ou uma expectativa que não desilude, mas vê a realidade reforçar o ideário trabalhado na antevisão.

Choveu sem parar, pelo menos dez horas: saímos do hotel às oito e pelas quatro da tarde, entrávamos no quarto para secar a roupa. Meias empapadas, casaco molhado, uma vareta do guarda-chuva partida lembrando um baloiço desengonçado.

O dilúvio desfazia na água correndo pelos passeios, ensopando os passos tristes que se apagavam à nossa passagem e turvavam a vista com que vimos de fugida, ao longe, a Ponte de Brooklyn, a ponte que havíamos planeado atravessar a pé mas da qual nem nos atrevemos a aproximar, tal era a força das bátegas que fustigavam os chapéus de quase-papel que compráramos.

Antes havíamos estado no Ground Zero, depois de vinte minutos num café embaciado aguardando, numa esperança frágil, que a chuva desse tréguas. A homenagem às vítimas do 11 de Setembro poderia ter sido impactante, magnânima, dado ter sido um dos eventos históricos mais perenes que a minha geração viveu (os outros foram a queda do muro e a pandemia). Só que não: chuva e mais chuva a alagar a nossa paciência e destruir a boa vontade que levávamos para conhecer Nova York. Puta de chuva!

As mãos gelavam para segurar o chapéu com o termómetro próximo do zero, e seguimos metro acima novamente, depois de decidirmos enfiarmo-nos no Museu Americano de História Natural, um daqueles que tem que ser, sabe-se lá porquê, por quem ou para quê. Tínhamos que entrar em qualquer lado para aproveitar a cidade que nos expulsava para o interior de qualquer coisa. Tivemos nós a ideia, tal como o outro milhão de turistas que naquele dia, como nós, resolveu barricar-se no museu.

Uma puta de uma fila que contornava o quarteirão estendia-se por mais de cem metros de pinos a pingar, uns de chapéu aberto, outros nem isso, e nós a alinharmos pelo diapasão da cidade, mais dois na maralha, e eu a agoirar que esta puta de cidade nunca mais.

Entrámos no museu. Pior que a romaria a Fátima ou ao Marquês, o mundo inteiro tinha caído ali, naquele mostruário de maquetes falsificadas da loja do chinês: nos museus pode aprender-se muito, mas se dúvidas eu tivesse que a maioria deles não são a minha praia, ali ficou mais uma vez demonstrado tal facto.

Um Filme Permanente

Nova York mostrava-lhes um filme permanentemente inacabado, um palco onde caminhavam e se viam a actuar ao mesmo tempo que se vestiam de espectadores – a consciência do Eu vista de fora: o sonho do autoconhecimento – num anonimato que assustava.

Milhares, milhões entravam, caminhavam, trabalhavam na cidade, gente indiferenciada que provavelmente nunca sairia da cepa torta, engolida por empregos de merda, tão tipicamente nova-iorquinos, vendedores de cachorros, taxistas, recepcionistas de hotel, seguranças, empregados de fast food, lojas, polícias do NYPD… a cidade absorvia-os, esmagando a individualidade.

Talvez a necessidade de afirmação, de fugir às garras da indiferença com que a sociedade de Nova York agarra e calca quem a ela se entrega sem luta, produzisse tantos excêntricos ou psicopatas, donos de um último grito de afirmação, riquexós para turistas movidos a bicicleta com música aos berros, impotentes perante a brutalidade dos arranha-céus, mas agressivos para os ouvidos pequeninos, cá de baixo.

E eles passeavam de mão dada, observando tudo em constante contraponto com os filmes. Num dia era a Nova York de Metrópolis, que escravizava, ou de The Crowd, que engole, duas obras-primas do cinema mudo que, talvez pelo contraste com que o silêncio da tela deixa para as imagens a violência sonora, melhor retratam o desprezo doloroso da cidade. Noutro dia era O Grande Amor da Minha Vida ou Boneca de Luxo que eles viam nos passeios, nas fachadas ou no plano secundário, o trânsito e os semáforos e um táxi a parar, e tudo era sonho e glamour.

Junto à pista de gelo do Rockefeller, outro must cinematográfico, viveram o sonho americano: talvez tivesse sido para eles, mais até do que o Empire State Building, o Central Park ou Times Square, o lugar mais sonho realizado / expectativa cumprida. Pelo menos para ele foi decerto, e a mensagem do pai, via whatsapp desde Portugal Recordação é saudade. Estive há uns anitos no restaurante do Rockefeller Center. Não era mais pelos relatos e recordações alheias, a que ele juntava os filmes, que podia falar da cidade. A experiência da atmosfera nova-iorquina fazia-se finalmente sua, na primeira pessoa.

Por fim, os Filmes

Depois da tormenta, o céu abriu, o sol desceu à cidade e a vista que do Top of the Rock se estendeu sob o nosso assombro devolveu-nos o amor a uma cidade que impressiona. Toda a ambivalência se espraiava num círculo completo, o Empire State Building a sul, the nearest thing to heaven, e o Central Park do lado contrário lembrando-me o mítico concerto de Simon & Garfunkel. Evoquei a famosa foto dos trabalhadores sentados numa viga de ferro a almoçar nas alturas aquando da construção, e lá estava a Beam Experience

Antes, havíamos trilhado a Madison Avenue, à descoberta de uma Nova York diferente, uma outra beleza não apenas pela natureza distinta que a parte leste de Mid Manhattan oferecia, como pelo ângulo de incidência do sol matinal na cidade deserta: eram oito da manhã quando começámos a subir Vamos por este lado agora, uma rua diferente, e vai dar perto da Central Station. Um lugar obrigatório

Central Park. Um parque nunca deixa de ser um parque, seja em que cidade for. É talvez o que menos se diferencia entre as diversas cidades que visitamos. Amesterdão, Londres, Viena ou Madrid… relvados, lagos, o desporto domingueiro na corrida, patins ou bicicleta, sempre sob um frio soalheiro. As diferenças: os arranha-céus em volta e a dimensão deste rectângulo no meio da ilha. Objectivo: o Bramford Building, o prédio utilizado para os exteriores do clássico de terror A Semente do Diabo, de Polanski. Quando gravei o filme, o Carlos Filipe, numa visita lá a casa tratou de enriquecer a minha curiosidade Eh pá! Nesse prédio aconteceram uma série de coisas estranhas. A malta até diz que ele está assombrado: foram avistados fantasmas, foi feito esse filme, e depois veio o assassinato do John Lennon. Ao pesquisar constatei que o Dakota Building (o verdadeiro nome do edifício) é mais um daqueles pontos onde a chalupice grassa: traves que levitam sozinhas na cave sinistra, mortes misteriosas e claro, o John Lennon passou a ser visto por alguns após a sua morte. Para mim é apenas o cenário de Rosemary’s Baby e a última morada de Lennon.

Greenwich Village é uma cidade à parte da grande cidade, é a Nova York de Woody Allen e da Bleecker Street, na canção de Simon & Garfunkel…

Voices leaking from a sad café

Smiling faces try to understand

I saw a shadow touch a shadow’s hand

On Bleecker Street

… e as ruas habitacionais de blocos rasteiros e da Washington Square. Foi um passeio a recordar Um Amor Inevitável e O Padrinho, Scorcese e tanta magia que ali descia ao concreto.

O Segredo de Joe Gould, um pequeno livro sobre um vagabundo de Nova York que deambulava por Greenwich Village, a história do sem abrigo que registava todas as conversas que ia apanhando nas ruas e em cafés (às quais ele chama A História Oral do Nosso Tempo) em pequenos cadernos que guardava num armazém, trazendo sempre alguns consigo, arrebatou-me. Joe Gould acreditava que a história de cada época não se faria das grandes batalhas e conquistas, mas o quotidiano da mole de gente indiferenciada com as suas minudências e conversas de todos os dias. E o seu mundo acontecia no perímetro daquele bairro nova-iorquino.

É para mim intrigante a curiosidade que sentimos em conhecer, visitar ou somente estar em certos lugares, apenas porque vimos retratados num livro ou num filme ou só mencionados numa canção (como Bleecker Street). Talvez seja também essa ligação à realidade que a Arte nos oferece, a da transformação dos lugares e personagens reais em algo mais do que aquilo que o nosso contacto desirmanado de qualquer outra referência deixaria em nós. Greenwich Village não é só para mim o bairro dos prédios baixos de tijolo burro com as escadinhas a subir para a entrada; é um dos lugares sobre o qual Mitchell escreveu e que Joe Gould fez seu.

Nova York revelou ser toda uma experiência. Palmilhámos meia Manhattan, ora de mãos dadas, ora em casulos de guarda-chuva, mas sempre com a curiosidade à espreita. Provavelmente as ideias aqui expressas não serão definitivas, mas são as que guardam de forma mais viva as impressões a assentar, quando a excitação da novidade ainda aquece a memória, mas a elucubração sobre o que vivemos não teceu ainda todos os seus juízos.

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