Uniformes, ajustes e outros dramas

Memórias são doces ou amargas consoante o que houver para recordar. Ser pequeno é estar indefeso e as bombas e tiros chegam de todos os lados. Como limpar os traumas que ficaram colados à pele e irritam, com persistência, a alma que ainda chora?

Roupa, peças que tapam o corpo e disfarçam a vontade ou uma imposição da sociedade, tanto faz, são duras marcas que ainda persistem em mim. Trapos que provocaram tanta discórdia e não chegaram à função para que tinham sido propostos.

Claro que um bebé precisa de estar tapado ou arejado, conforme a época do ano. Não há é necessidade de o estar a sufocar ou a deixá-lo a bater o dente. Meio termo precisa-se.

Olhando para o que já lá vai, arrepio-me com tantas torturas que sofri e que não consegui escapar. Ser trajada pela minha mãe era um castigo que nunca será perdoado. Volta não volta, ainda sonho com uma delas.

A pior de todas, se conseguir eleger o topo, terá sido a que tinha um gorro tapa orelhas e com botão na parte de cima. Era uma peça branca, com pelo, com umas badanas que se prendiam debaixo do queixo e eu, simplesmente, odiava-o por muitos motivos.

Fiz de tudo para o perder, mas, como que por milagre, aparecia sempre. Claro que ninguém queria aquela coisa horrorosa. Ficava assim para o esquecido na escola ou no autocarro, mas, a minha estrela fundida, trazia-o de volta.

Tenho uma fotografia de família, com o meu irmão e as primas, onde exibo uma camisola que era bonita, mas que picava tanto que só a queria tirar. Além de ser complicada de vestir, era muito pior de usar. Esta é outra mágoa das grandes.

Outra peça que odiava era uma gabardina que me dava um ar ridículo e eu, rapidamente, despia-a, colocava-a na caixa do correio e ia à minha vida. Frio não me assistia e chuva fazia bem à pele. Nunca fui catada neste desvario.

Recuando ao tempo do colégio, onde passei milhões de anos, o uniforme era obrigatório. Maldita peça de vestuário que tinha uma cor indefinida e era um vestido sem mangas, muito rabão. A camisa era fechada com botões de punho, o que me agradava.

Não percebi este critério. Uma saia entendo, por ser uma peça feminina, a escola era de meninas, mas a camisa dava ares masculinos. Talvez as freiras fossem muito avanças para a época. Só que não. Nunca gostei daquela farpela e ainda detesto camisas.

O que me dava satisfação eram os collants que usei de todas as cores. Leves, jovens, atraentes e muito simpáticos, não os dispensava com as roupas mais curtas. Vendo bem aqueles tons de verde e laranja só ficavam bem nos anos 70.

Mas os meus ódios de estimação não se ficam por aqui. Nem vou mencionar as cuecas, o fiel apanágio dos bons costumes, que cobriam quase todo o corpo tecidas com um material de componente rijo e bélico. Esquemas para se perder o amor próprio e a vontade de viver, é o que é.

Cintas, os símbolos femininos de bem parecer e que nenhum terapeuta de excepção terá o condão de me retirar da memória. Tão, mas tão apertadas, que quase não conseguia respirar. Que ideia mais tola! Qual era a função? Matar a miúda que vivia em mim? Sem sucesso, como se percebe.

Soutiens, os suportes de uma espécie de ovos estrelados que ansiavam vir a ser algumas sei lá o quê. Rendas que arrepanhavam a pele e que me dava uma imensa comichão. Com fechos de metal que provocavam alergia. Que bom era não os usar, mas o meu corpo decidiu crescer rápido.

A cereja em cima do bolo, o que bate todos os pontos é… tcharam… a combinação! Até esta palavra me incomodava. Uma peça para vestir por cima das roupas interiores e antes das que ficavam de fora. Uma beleza de estilismo feita com um tecido moderno, nylon, que me dava choques e causava um sem número de náuseas.

E o cabelo? Nem esse escapava. Ele era laços, elásticos, bandoletes, fitas, arames, ganchos e outras ferramentas prontas a arrancarem o couto cabeludo e a paciência. Para ficar mais bonita, era o que diziam. Porra! Então, porque é que não ficava? Chega!

Quem inventou estes castigos corporais devia sofrer de uma auto estima muito baixa. Fazer com que as meninas, seres ingénuos e puros, fossem forçadas a mutilar o seu bem-estar e gosto, é de loucos.

Moda infantil. Até o nome é castrador. Todas as crianças devem vestir roupas confortáveis que lhes permitam exercer a sua idade. Que barbaridade. E não havia meio termo. A seguir eram as “mulherzinhas” com outra parafernália do mesmo teor: guerra!

Freud, se me ouves, solta uma epifania a quem foi meu carrasco e dá-lhes a intensa luz para o arrependimento que tarda. Restam alguns dos meus algozes e não sei se lhes consigo dar a benesse do perdão.

Felizmente que a Mary Quant veio salvar-me, com grande honra e valor. Criou as peças de vestuário prático e bonito e encurtou, com mestria, os cenários de horror que a falta de cor imprimia ao vestuário.

Nunca fui princesa, mas o salvamento foi um sucesso. Ainda hoje a louvo com primor e não sei como lhe agradecer ter-me liberto do jugo da pimpineira do trajar em modo solteirão.

Essas marcas são estigmas e recalcamentos impossíveis de superar. As crianças são seres pequenos que não precisam de ser espremidos para crescer. Necessitam de amor e calor que as cobertas ajudam a tapar. As roupas não podem, de modo algum, ser armaduras que castrem a vontade de viver.

Ainda tenho umas estranhas comichões psicológicas causadas por certas camisolas que odiava, mas tinha que vestir. Imperativos ridículos e bacocos. Folhos e laços não são medalhas, mas, sim, armas potentes que fazem desenvolver sentimentos de ódio em quem é forçado a exibir certas peças.

Hoje a mentalidade parece ter sofrido uma tal leveza que as crianças são vistas como seres pensantes e com capacidade de decisão. Nem sempre a melhor, mas já é um avanço. As pobres mães já sofreram o suficiente na infância para não perpetuar as torturas ancestrais. Ou será que não?

Claro que ir de pijama ou com o traje completo do homem aranha para a escola ou outro lugar, não é de todo o mais certo, mas serve para equilibrar a balança da moda com a infantilidade. É por isso que as tias e as avós, ou até mesmo os pais, que são especialistas na matéria, ou não, têm uma palavra a dizer. Entenda-se especialistas de coisa nenhuma.

O resto, o baú do enxoval, valha-me Nossa Senhora da Santa Paciência, será mais um tema para desenvolver com todas as variantes que a raiva, a ira, o ódio e a falta de pachorra, que é prima da dita santa, terão a devida atenção e muito propriamente lugar para que a catarse, se possa fazer. Chiça!

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Aventura(s) na Lousã

Next Post

Breve encontro com uma amiga

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Cassilda, o corpo

Velha, enrugada e escondida, ninguém diria que aquela mulher tinha sido motivo de inveja e de raiva para tanta…

O Continente de Bilhões

Escolhi motivada talvez por uma certa raiva falar sobre o livro Pele Negra, Máscaras Brancas de Franz Fanon.…