Foi há 23 anos que estreou o filme The Matrix. Esta obra cinematográfica, realizada por Lana e Lilly Wachowski, rapidamente se tornou num êxito de bilheteira e revolucionou o mundo do cinema. Tentar isolar e explicar os elementos que tornam de The Matrix uma épica, extraordinária e poderosa obra-prima seria uma tarefa hercúlea e que requereria uma substancial quantidade de horas e de recursos, não fosse o filme extremamente complexo — não só em termos técnicos e cinematográficos, mas principalmente em termos de análise de conteúdo e filosóficos.
O impacto do filme foi tão significativo que deu origem a uma sequela, seguindo-se The Matrix: Reloaded (2003) e The Matrix: Revolutions (2004). Mais recentemente, foi acrescentado à trilogia The Matrix: Ressuractions (2021), naquilo que parece ser uma tentativa de sintetizar a trilogia e de tentar de recuperar o seu encanto, fascínio e originalidade (e lucro, quiçá).
A mensagem fundamental de The Matrix não é fácil de captar. Toda a questão do controlo das máquinas sobre a mente humana e de como elas estão a usar os humanos para produzir energia não parece ser clara no primeiro filme das sequelas. No entanto, no filme Animatrix, lançado pouco depois, apresenta as premissas fundamentais que orientaram toda a trilogia.
De forma muito resumida, num dado momento (futuro) da história as máquinas (dotadas de um nível significativo de desenvolvimento e de autonomia) revoltam-se contra os seus criadores (os humanos). Na tentativa de derrotar as máquinas, os humanos tentam privá-las das fontes de energia que asseguram as suas funções. No entanto, e depois de vencerem a guerra, as máquinas apercebem-se de que os seres humanos podem ser usados como fonte de energia. Posto isto, elas aprisionam os seres humanos dentro de casulos onde a sua mente é manipulada, sendo fabricada a ilusão de que estes estão, de facto, a viver uma vida normal. Esta ilusão é essencial pois os seres humanos não são capazes de viver sem atividade mental e sem as experiências características da sua natureza (paixão, medo, excitação, amor, entre muitas outras).
Resumidamente, enquanto os humanos são mantidos vivos e (necessariamente) a viver numa realidade simulada, as máquinas podem utilizar a sua energia e, assim, continuar a prosperar no mundo real.
Podemos, então, definir a matrix como a simulação da realidade onde as mentes humanas estão aprisionadas. A matrix funciona porque a mente acredita que é livre—porque a realidade simulada é tão ou mais real do que que a realidade objetiva.
Inevitavelmente, estamos a recorrer a conceitos formulados pelo filósofo francês Jean Baudrillard e apresentados no seu livro Simulacres et Simulation. Aliás, existe uma referência direta à obra numa das cenas iniciais do primeiro filme — Neo guarda informação ilegal dentro de um livro intitulado Simulacra and Simulation. No entanto, arrisco-me a dizer que toda a trilogia é uma referência ao trabalho de Baudrillard. Portanto, Baudrillard questiona o que é a realidade e principalmente como ela é alterada ou mesmo produzida pela cultura e pelos meios de comunicação. Desta análise resulta o conceito de Hiper-realidade, remetendo este para uma perceção da realidade onde a simulação é mais real — é tido como mais autêntica, mais verosímil — do que a sua forma original.
Os humanos reféns da matrix vivem numa simulação, eles acreditam ter parte ativa numa realidade que, objetivamente, não existe. Neste contexto, a simulação é produzida e veiculada pelas máquinas e para benefício das mesmas. A luta travada por Morpheus, Trinity e Neo é pela libertação da humanidade desta simulação — liberdade é contemplar o mundo como ele realmente é; liberdade é sair da caverna, onde o mundo é representado através de sombras, como ilustrou Platão na sua alegoria da caverna.
A nossa relação com a tecnologia é cada vez mais próxima, intensa e dependente. Esta quase-simbiose é tão intrínseca que dificilmente pensamos na tecnologia como algo passível se ser interpretador fora da sua relação com o ser humano. A tecnologia já não nos parece uma coisa distante ou exótica, ela é a normalidade. Ela chega a ser tão banal que até passa despercebida. No entanto, e dado que dificilmente conseguimos ser produtivos, sociabilizar, trabalhar e estudar sem recorrer à tecnologia, raramente questionamos o efeito que esta tem sobre a forma como interagimos com o mundo.
Posto isto, talvez tenhamos chegado a um momento histórico em que somos dependentes da tecnologia para quase tudo — poderei eu dizer que somos subordinados à tecnologia? Se aceitarmos esta premissa, poderemos facilmente estabelecer uma correspondência com The Matrix: em ambas as situações a tecnologia (ou as máquinas) tem um substancial poder sobre o ser humano. Assim sendo, estaremos a ir longe de mais ao afirmar que também estamos a viver numa simulação?
Ora vejamos, um dos fenómenos mais marcantes da atualidade é o uso (e abuso) das redes sociais. Certo é que as redes sociais sempre existiram. Com mais ou menos tecnologia envolvida, com ou sem teclas, com ou sem touchscreen o ser humano sempre pareceu ter uma predisposição para comunicar e estabelecer conexões, redes e fluxos de informação. O que talvez caracterize a forma como atualmente as redes sociais sejam usadas seja o seu imediatismo e a extensão que elas têm nas nossas vidas.
A tecnologia que atualmente dispomos permite-nos comunicar quase em tempo real. Graças a plataformas como o Twitter, o Instagram ou o Facebook, a disseminação de informação acontece rapidamente e alcançando um substancial número de pessoas. Neste sentido, podemos afirmar que a informação nunca foi tão fácil e tão rápida de se partilhar. Isto pode ter um lado sombrio: a informação partilhada é tanta e em tão pouco tempo que se torna difícil discernir a informação de qualidade (ou verdadeira) da que não o é. Um exemplo crítico desta constatação são as fake news.
Outra particularidade das redes sociais modernas é a extensão que têm nas nossas vidas. Isto poderá ser inferido pelo tempo que dedicamos a partilhar informação nas redes sociais e o acesso que concedemos à esfera mais privada das nossas vidas. Atualmente, dada a simbiose entre pessoas e redes sociais, a barreira entre o que é publico e privado parece estar a tornar-se mais ténue e transponível. Não só as pessoas partilham mais sobre as suas vidas, como também as empresas por detrás da gestão das redes sociais têm um maior e melhor acesso ao perfil dos seus utilizadores. A quantidade de dados recolhidos e armazenados por estas plataformas tem levantado sérias questões éticas. Até que ponto o Instagram saberá mais sobre os meus gostos do que o meu melhor amigo? E se de facto sabe mais, como poderá este conhecimento ser utilizado?
Embora o fenómeno das redes sociais seja bem mais complexo do que o que foi aqui retratado, facilmente poderemos intuir que a forma como existimos no mundo é bastante condicionada pela informação que partilhamos. Assim sendo, a informação que partilhamos bem como a forma como o fazemos irá afetar a nossa perceção da realidade. Verificamos também que nesta íntima relação estabelecida com a tecnologia, e mais concretamente com as redes sociais, pode haver a transposição de limites, sejam eles éticos, legais ou epistemológicos. Objetivamente, o limite entre a verdade e a mentira pode ser facilmente ajustado em função de certos interesses, sejam eles económicos, políticos ou individuais.
Basicamente, vivemos como peixes num mar de informação com uma profundidade considerável e bastante agitação. E que informação é esta que constitui o nosso habitat? Qual a sua veracidade? Quem a produz?
Um bom exemplo da manipulação da realidade através da tecnologia é o Instagram. Aqui, todos os dias somos bombardeados com imagens de pessoas que parecem estar a viver o melhor momento das suas vidas. Abundam as viagens a sítios paradisíacos e exóticos, as refeições sofisticadas, corpos esculturais, roupas e acessórios de luxo, etc. A frequência e a consistência com que grande parte das pessoas partilha este tipo de conteúdos levar-nos-á facilmente a acreditar que estas pessoas têm um lifestyle invejável, luxuoso, elegante e sofisticado. Talvez uma das coisas mais interessantes das redes sociais no geral, e do Instagram em particular, é que permitem que as pessoas aplicarem estratégias de marketing a si próprias. Assim sendo, será que que o Instagram, ou qualquer outra rede social, retratam ou fabricam a realidade?
Se de facto acreditarmos que aquilo que nos é veiculado pelas redes sociais e pelos média influencia significativamente a nossa perceção da realidade e, conjuntamente, que muita da informação veiculada distorce a realidade, como podemos nós distinguir o que é real do que não é? E se se acreditar na informação que é veiculada, juntamente com as suas idealizações e omissões, como se poderá afirmar que o que se conhece é real ou o que é verdade?
Com muito menos armas, acrobacias, golpes de artes marciais e efeitos especiais podemos afirmar que vivemos numa simulação no qual nada parece ser o que realmente é. Não é por acaso que cada vez mais vivemos num mundo onde toda a gente parece suspeitar de toda a gente — talvez este sintoma denote uma sensação mais ou menos generalizada de que as pessoas se sentem distantes da verdade. Conceitos como sucesso, beleza ou riqueza são-nos veiculados como produtos finalizados que encapsulam ideais, camadas de significado e intenções que facilmente aceitamos—precisamente porque nos parecem mais reais do que qualquer outra coisa que possa ser imaginada. Seremos então nós realmente livres? Livres de pensar fora destes conceitos e de todas as pressões políticas, ideológicas ou económicas que existem?
Ainda hoje faz sentido falar de The Matrix, talvez até mais do que há 23 amos atrás. O desenvolvimento tecnológico — das máquinas — tem esculpido significativamente o nosso conceito de realidade. Por um lado, os significativos avanços científicos e tecnológicos facilitaram as nossas rotinas e o acesso (virtualmente ilimitado) à informação; por outro, nunca antes foi tão fácil disseminar mentiras, criar personas, produzir cópias e imolar estilos de vida. Estarão as máquinas a ganhar cada vez mais controlo sobre nós? Ou será que já ganharam total controlo sobre a humanidade e isto, de facto, já é uma simulação?