Numa sociedade cada vez mais acelerada, o tempo de leitura de um livro parece ser algo que é negligenciado por grande parte dos portugueses. Ou não se tem tempo, entre o trabalho e as tarefas do dia-a-dia ou ler dá-nos sono e não passamos das primeiras páginas ou simplesmente preferimos ver as adaptações cinematográficas.
A verdade, é que o grande problema da relação dos portugueses com a leitura, não é de agora e quando dizemos que ‘não temos tempo’ para ler ou não gostamos de ler porque é ‘difícil’ ou um pouco ‘aborrecido’, são apenas reflexos no presente de outras questões estruturais ligadas aos hábitos de leitura em Portugal que conhecemos desde que entramos na escola primária ou, ainda mais cedo, quando em muitas casas portuguesas não existe uma estante com livros.
De facto, ver uma adaptação cinematográfica (quando bem feita) também sabe bem ou uma mera série na Netflix, mas é necessária uma mudança urgente de paradigma e de desmistificação de que a leitura ‘dá trabalho’.
Esta ideia é construída com base em experiências passadas em que, efectivamente, ler um livro deu trabalho e foi até aborrecido. Experiência essa que foi recalcada ao longo dos anos, através da imposição de um Plano Nacional de Leitura que faz questão de valorizar apenas uma parcela muito reduzida da diversidade literária.
Constrói-se a ideia de que só aqueles livros clássicos é que são válidos e que, por isso, se eu não gosto de livros clássicos nunca vou retirar prazer da leitura e, se isso acontecer com livros fora deste Plano, formal e enraizado na sociedade que promove a elitização da leitura, então não estaremos a ser produtivos, porque estamos a perder o nosso tempo e até a desfrutar de ‘literatura menor’.
A literatura pode ser uma ferramenta de aprendizagem, de ganho de conhecimento, de acrescento de vocabulário. Mas deve ser, acima de tudo, uma fonte de prazer e não uma obrigatoriedade limitada a um certo tipo de livros, que devem ser lidos num determinado tempo e interpretados segundo um ângulo estipulado pela educação.
Com isto, não estou a diminuir a importância da existência de um Plano Nacional de Leitura. A questão que se coloca é se este não deve ser revisto e aumentar o número de géneros, de autores, de assuntos.
Para além disto, a literatura (e a cultura no geral) não deve ser elitista. Não é justo categorizar um género em relação ao outro quando todos são válidos, desde que contribuam para a satisfação do leitor.
Descriminar géneros e gostos literários é descriminar pessoas e qualificar “tipos” de pessoas.
Não é admissível que no contexto mundial que vivemos atualmente, o PNL mantenha e reforce traços de falta de representatividade, desigualdade de género (particularmente no número de escritores em comparação com o número de escritoras leccionadas e aconselhadas para leitura), bem como cantos que descrevam o corpo da mulher como ‘prémio’ para o homem (Ilha dos Amores; cantos IX e X de Os Lusíadas) e que ainda se reforce branqueamento e apagamento histórico da época colonial.
A estes aspectos, associa-se a ideia de que os livros contemporâneos são mais ‘fracos’ e de literatura ‘light’, defendendo-se muitas vezes que apenas os clássicos são aptos a serem considerados ‘verdadeira’ literatura.
Ora, a verdade é que tudo isto está tão errado, que a maior parte dos jovens não desperta interesse nem cria hábitos de leitura.
“Em 2019, a maioria dos 7.469 alunos inquiridos num estudo do Plano Nacional de Leitura e do ISCTE admitiu ter lido menos de três livros por prazer nos 12 meses anteriores ao inquérito”.
Como é que se dão aulas de português a alunos sem gosto pela leitura e sem perceberem o contributo positivo da leitura e se esperam bons resultados? A verdade é que a literatura contemporânea atrai, cativa e cria hábitos que poderão fazer o leitor chegar futuramente aos clássicos, já com uma certa maturidade e gosto literário criado. E mesmo que não se chegue a esse gosto por clássicos, também está tudo bem, porque o objetivo não pode ser esse. O objetivo é ler e retirar disso prazer e conhecimento.
Na era digital que vivemos, a própria forma como muitas vezes se coloca os livros como substituto dos ecrãs ou quase como castigo durante a educação de um jovem, acaba por ser errada.
Os livros não podem ser uma ditadura, colocada ao invés dos ecrãs. Eles têm que conviver e isso torna-se possível a partir do momento em que se deixa de ver a literatura como algo para os ‘outros’, difícil e maçador.
Noutros países da Europa, vemos o número de livros lidos por jovem a aumentarem, com editoras que se abrem ao universo digital e conseguem dele fazer o melhor uso para cativar os jovens para a leitura. Novos géneros literários como o Young Adult, também têm incentivado os jovens a ler, de que ‘Normal People’ de Sally Rooney é um exemplo de sucesso.
Em Portugal é urgente apurar, debater e criar soluções para a forma como os jovens vêem a literatura. É necessário que a própria indústria inove e se mantenha aberta e receptiva a questionar os seus próprios métodos, de forma a perceber o que tem afastado tanto os portugueses, em particular os jovens, deste hábito tão bonito e saudável que é a leitura.
Como recomendação, deixo aqui uma página de instagram da Helena Magalhães, uma mulher que têm debatido esta questão e que se têm esforçado para desconstruir a ideia de literatura contemporânea como ‘light’ (como algo pejorativo) e que apresenta regularmente recomendações muito boas na sua página literária .
Deixo também uma conferência na página de Facebook do jornal Público onde se debateram muitas questões que aqui abordei, como o papel da leitura no mundo atual, a forma como funciona a indústria, quais os livros mais lidos e interessantes para o público, entre outras questões, sob diferentes pontos de vista.
E, claro, não poderia deixar de apelar à compra de autores portugueses, que têm apresentado livros tão interessantes e tão bons, clássicos e contemporâneos.
Neste artigo podemos não ter falado de pobreza económica, mas falamos de um outro tipo de pobreza que tem repercussões sociais e políticas de grande dimensão.
Ler é conhecer, abrir novos mundos e perspectivas e é essa a essência que deve ser respeitada, acima de qualquer tipo de elitização ou hierarquia.