Ao Cair do Pano

Há dias em que não vem ninguém. Se chove, se é dia de semana, se é meio do mês, não vem ninguém. No quarto isolado, só se entra de máscara, luvas, bata. Tudo estéril e impessoal. Naquela cama, ela é apenas um corpo. O tubo que lhe entra pela traqueia garante que não chegou ainda o momento de chamar a agência funerária. Está aqui há demasiado tempo. Já perdi a conta aos turnos que fiz com ela ali deitada, um corpo numa cama, a história que ninguém lhe conhece, a vida que desapareceu para além dela, tudo o que ela deixou de ser quando morreu.

Matámo-la nós. Para que viva, tem de morrer. Induzimos-lhe o coma e esperamos que resulte. As infecções são constantes. As bactérias resistem à medicação. Enquanto as análises não mostrarem melhorias é assim que ficará: quase morta, tão longe de voltar a estar viva.

De vez em quando, tem visitas. A irmã vem mais vezes. Nem sempre entra: a preguiça de se equipar a ser mais forte do que a vontade de sentir a irmã. Perguntou-me se ela a consegue ouvir. Não lhe menti: não sabemos. Talvez consiga e, se conseguir, é bom que lhe fale, para que se sinta acompanhada, para que saiba que a querem de volta, para que ganhe forças para lutar. Quando a irmã entra, nunca fica muito tempo. Não sabe o que há-de dizer, confessou-me há algum tempo. Disse-lhe que isso não é importante. O que importa é a voz, o toque, o calor. Se a irmã, quase morta, a sentir ali, viva, ao seu lado, talvez consiga combater o que quer que seja que a come por dentro. Se ela, quase morta, de alguma forma conseguir sentir que não está sozinha, talvez tenha motivos para ficar.

Do lado de cá, tentamos segurá-los. Mantemo-los vivos para que a esperança persista. Por vezes – demasiadas vezes -, isto não é mais do que uma enorme perda de tempo. Deixamo-los no limbo, temos quase a certeza de que vão morrer, mas mantemo-los ali, uma máquina a respirar por eles, outra a alimentá-los, uma a garantir que excretam tudo o que devem, fios e cateteres, tubos e tanta coisa que, em vez de lhes prolongar a vida, apenas lhes prolonga o sofrimento. 

Jurámos salvar vidas. Às vezes, isso significa deixá-los ir. Se perguntarem, todos vos diremos que fizemos sempre o nosso melhor, que garantimos sempre a salvaguarda da vida. Mentimos. Todos. Nem sempre fizemos tudo o que podíamos porque, por vezes, isso significava não deixar partir quem, na verdade, já não estava cá. 

Hoje não veio ninguém. Ao fim de quase seis meses aqui, a irmã já nem telefona. Talvez já se tenha habituado à ausência dela. Talvez tenha aprendido a viver assim, sem ela, ainda viva, quase morta.. Ou talvez seja precisamente por não conseguir aceitar um fim possível que se mantém à distância. Chega. Neste tempo todo, nada mudou. Nenhuma reacção. A infecção não passa, a bactéria resiste. Hoje entrarei sozinha no isolamento. Equipar-me-ei como sempre. Puxarei as cortinas para que os outros doentes, em estados mais ou menos graves, mas nenhum tão delicado como o dela, não vejam o que vou fazer. Hoje silenciarei as máquinas. Hoje deixá-la-ei partir. Sem despedidas, sem lágrimas, sem lamentos. Uma vida que já não é vida e que precisa de terminar. O limbo desfeito. O abismo conquistado. O túnel cuja luz há-de aproximar-se, até que seja um clarão que a cegue e a engula. Até que tudo termine e ela possa, finalmente, libertar-se. Não serei julgada. Ninguém saberá o que aconteceu. Por vezes, é assim: os doentes pioram, o que era estável deixa de ser e surpresas acontecem. Por norma, acontecem nos turnos de quem acredita mais na vida do que na morte. Mas, se pudermos, ajudaremos a que os nossos doentes, entretanto abandonados por quem devia cuidar deles mas que, com o tempo, deixou de acreditar, regressem a casa. Viverão de novo. Outro sítio, a morte, outra vida. Tudo é melhor do que uma máquina que respira por nós, que nos mantém suspensos entre dois mundos. Se é para viver, que seja por inteiro. Se é para morrer, que seja de uma vez. Hoje, quando entrar no isolamento, fecharei as cortinas e deixá-la-ei partir. Para que viva noutro lugar. Para que acabe, finalmente, de morrer.

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