“Era o momento mais feliz da minha vida, apesar de eu não o saber“. Assim começa o mais recente (e um dos mais belos) livros de Orhan Pamuk.
Cada um de nós terá um momento que identifica como o mais feliz, o mais importante, o mais significativo, o mais compensador, de toda uma vida. Porém, como bem explica Pamuk, uns capítulos mais adiante, para se saber qual é esse momento é preciso que a vida se torne, um dia, como por vezes se diz, ‘parada’, ou estável, mas não necessariamente pior, ou mais infeliz.
“Na verdade ninguém reconhece o momento mais feliz da sua vida no momento em que o está a viver. É possível que, num momento de alegria, se possa sinceramente acreditar nesse ouro do ‘agora’, mesmo tendo vivido um tal momento antes, mas apesar de tudo o que se possa dizer, numa parte do nosso coração ainda acreditamos na certeza de um momento mais feliz, que há-de vir. Porque, como pode alguém e particularmente, quem ainda é jovem, continuar a transportar a crença de que as coisas só podem piorar: se uma pessoa está feliz o suficiente para pensar que chegou o momento mais feliz da sua vida, ela vai ter esperança suficiente para acreditar que o seu futuro será tão belo, ou mais ainda. Mas quando chegarmos ao ponto em que as nossas vidas tomam a sua forma final, como um romance, podemos identificar o nosso momento mais feliz, selecionando-o em retrospectiva.” (Pamuk, in O museu da inocência)
O momento da maior e mais perfeita felicidade pode ser o de um grande amor, o de uma grande realização. Pode ser muita coisa, que, na realidade, só se sabe, quando a curva da vida entra na parte plana e estável, na fase em que a probabilidade de melhores, ou mais felizes momentos, se torna muito improvável.
Essa fase “de estagnação” das nossas vidas pode chegar mais cedo ou mais tarde. Pode a sua chegada ser por nós influenciada, ou não. Pode-se, se chegar tarde, dizer que a vida foi bem, intensa e plenamente vivida, ou que, ao contrário, estagnou cedo demais. Isto, se tivermos a perspectiva das nossas vidas como a de um copo meio-vazio e não a de um copo meio-cheio, a cada momento. Por outro lado, a noção do momento mais feliz, depende, também, e fortemente, das expectativas em relação a ela e, mais relevante, do que nela mais valorizamos. E nem sempre, mas muito, muito frequentemente, se identificam os momentos de maior valor, como os associados à vida amorosa, ou sentimental (apesar de que, ou posto que, alguns de nós possamos valorizar mais a vertente de realização profissional, ou social, entre outras perspectivas, também elas válidas). Aliás, a validade de cada perspectiva a cada um de nós compete. Contudo, como humanos, que nos sentimos distantes dos outros seres vivos, a vida sentimental é habitualmente a que mais intensamente nos marca, a que mais valorizamos, pelo menos quando sabemos ter algum, ou muito sucesso (realização) nela. E mais em particular, a vida amorosa.
O maior problema desta noção, consciente ou não, que temos de momentos a que atribuímos a nossa “valoração” pessoal e que nos leva a compararmos diversas fases das nossas vidas, é o risco de alguma frustração, ou mesmo infelicidade que tal nos pode acarretar. Um risco, mas que se tornará consequentemente um perigo, para a nossa mente e para a sensação de felicidade, dependendo da nossa capacidade, ou não, de o prevermos.
Esta obra de Pamuk explora os conflitos, ou melhor, as interrogações interiores de um homem, que as levou pela vida fora e anos mais tarde as reviveu, em memórias, nas quais, por análise comparativa, identificou o momento perfeito e não repetível da sua paixão proibida ou ilícita, da juventude. Uma obra cheia de sentimentos, de uma beleza única, essa sim, a do autor, um autêntico geógrafo da mente humana, ou das suas emoções. Um livro sereno, como não podia deixar de ser, a obra madura de um escritor maior.
Pode ser autobiográfico ou não, como foi aventado. No entanto, isso pouco importa, pois, a beleza da escrita e o enlevo da novela, capturam a nossa atenção e fazem-nos ter querido espiar, se possível tivesse sido, os protagonistas desta bela história, onde as lutas silenciosas interiores bem nos podem deixar a pensar nas nossas próprias vidas. E empurrar-nos para essa tentadora procura do nosso momento mágico na vida. Se já o vivemos. Ou levar-nos a estar mais atentos para os que ainda hão-de vir, se vierem e, tantas vezes, nem sabemos, mas pode ser uma inútil procura. O texto é um desafio ao leitor, nos seus sentimentos e ideologias pessoais. Um desafio a alguma ideia, sobre o casamento, o sexo, a família, a amizade e a felicidade, pedra de toque ou mote principal. O livro conta a história de Kemal, filho de uma abastada família de Istambul, e da sua bela, pobre e distante prima Füsun. Entre os dois desenvolve-se uma fascinante história de amor, a qual primeiro se estranha, depois se desconfia, para com o correr da leitura, se ir adoptando e desejando mais desenvolvimentos. Os desafios aos sentimentos humanos mais básicos e sensíveis vão surgindo e desafiando-nos, mas levando-nos a agarrar a leitura com crescente apetite. Adicionalmente, ganhamos algum conhecimento sobre Istambul e a Turquia, cidade e país do coração do autor, que não se inibe de nos encantar com as suas descrições. Deixemo-nos pois levar, apenas, na história que Pamuk nos conta, como ninguém excepto ele, o mestre das emoções humanas, nos podia encantar. Este é o livro, talvez, ideal para nos iniciarmos em Pamuk. E nos deixarmos apaixonar pela sua escrita, entre romântica e fria e, tantas vezes, desconcertante.
É um museu e um mapa das personagens de Pamuk e da nostalgia que se lhes cola à pele e deixará muitos leitores a pensar nos museus que podia fazer, com tantos objectos como Kemal recolheu e conservou, ou apenas com as memórias do momento que soubermos identificar como o “Mais feliz das nossas vidas”.
O mestre Pamuk vai agarrar muita gente à sua beleza e à força da sua linguagem poética única. E fazer-nos sonhar com Istambul de há quarenta anos.