Escrever sobre algo que nos toca profundamente o coração nem sempre é fácil, principalmente quando esse algo nos faz pensar e questionar o sentido de se ser humano. Nos últimos dias temos sido confrontados com inúmeros relatos vindos de Alepo, na Síria, uma cidade que poucos conheciam, mas que agora se tornou a face mais visível duma guerra que toma contornos cada vez mais impensáveis. No centro dessa guerra, indiscriminadamente, civis são mortos, pessoas cujas vidas são dilaceradas há anos por causa de ganância, de sede de poder, de desrespeito pelas liberdades mais básicas do ser humano.
Ocorre-me que vivemos tempos fantásticos, únicos, especiais, com avanços na saúde, na tecnologia e em tantas outras áreas. Colocámos sondas nos confins do sistema solar, obtivemos imagens de Plutão e colocámos uma sonda em Marte, mas ainda não conseguimos olhar para um ser humano como nosso irmão, ainda somos movidos pela necessidade de posse, de poder, fazendo tudo o que for necessário para o manter.
Olhamos para tantos, demasiados, pontos neste planeta e recordamo-nos duma história que parecia distante, de guerras mundiais que mudaram o mundo, de milhões e milhões de vidas colhidas por violência, armas, bombas, crianças e mulheres violadas, violentadas, homens arrastados para uma guerra através de propaganda e por uma doença do ego chamado nacionalismo. Parecia uma história distante, sanada, curada, mas o que vivemos hoje comprova algo que há muito tempo digo, que não fomos ainda capazes de integrar o que foi vivido na Segunda Guerra Mundial, que ainda não fomos capazes de aceitar, não o holocausto, as mortes ou os ataques, nem sequer o descambar numa mundialização da violência, mas sim a responsabilidade de ter sido o ser humano quem começou, quem despoletou e alimentou uma guerra de tamanha proporção. No fundo, ainda não fomos capazes, como sociedades e como humanidade, de nos perdoar a nós mesmos pela atrocidade de termos sido os responsáveis de tamanho acto.
Podemos até pensar que nós, as gerações mais novas, nada temos a ver com essa guerra, mas temos, todos nós temos, pois somos fruto desse tempo e sobre nós cai agora uma responsabilidade ainda maior, a de não repetir os erros do passado, de aprender com eles, mas de compreender que o que gerou essas mesmas situações continua hoje, ainda, infelizmente, presente nas nossas vidas. Exemplo disso são os nacionalismos exacerbados que começam a percorrer o mundo, um pouco por toda a parte, espelhados nos actos eleitorais, aqueles mesmos em que as gerações mais novas se recusam a votar, supostamente numa manifestação de vontade, a velha máxima da abstenção como protesto, dizendo que a responsabilidade não é sua e que não concordam com o sistema, mas em que nada fazem para o transformarem.
Em vez disso, percorrem-se as ruas de telemóvel na mão à procura de bichos imaginários para uma competição qualquer, vivem-se vidas irreais, problemas virtuais, partilha-se tudo sobre uma qualquer vida nas redes sociais, mas não se partilham sentimentos cara a cara, não se exprimem emoções com palavras, gestos ou actos. Partilham-se imagens de Alepo, de Charlie ou de outro lado qualquer, de crianças com doenças, fome ou em guerras, mas a seguir vão-se fazer exacerbadas compras para o Natal, porque fica bem. Nas cidades, nos países, rios de dinheiro são gastos em obras, põem-se passeios grandes e bonitos, constroem-se hotéis para receber turistas, mas esquecem-se os idosos sozinhos, as crianças cujas famílias mal têm para lhes dar de comer, as filas de pessoas que nessas mesmas cidades crescem para receber um prato de comida quente, uma palavra amiga, de esperança e afecto.
Acredito e afirmo muitas vezes que este tempo é extraordinário, porque ele pede-nos algo que ultrapassa tudo o que temos vivido como humanidade. É tempo de parar, quebrar os padrões e os ritmos insanos que temos vivido, de olhar a vida e o mundo de dentro para fora. Nada do que se passa no mundo acontece espontaneamente, mas sim porque, dentro de cada um de nós, há um caos que se instala, há estruturas que se quebram, há medos que sobressaem, há tantas coisas que precisam de ser trabalhadas e vividas que nem sabemos como começar. Dentro de cada um de nós há uma Alepo e todas aquelas crianças, mulheres e homens, há um Uganda e todos os outros países que sofrem em guerras, mas dentro de nós há também aquele senhor que todos os dias passa horas sozinho, abandonado por todos, e que mora mesmo ao nosso lado, há aquele homem ou mulher que só espera uma oportunidade para poder dar o seu melhor, mostrar o que vale e sair da pobreza em que vive. Se cada um olhar para dentro de si e for verdadeiro e sincero, vai ver esta realidade, vai ver os seus conflitos, onde não está satisfeito, onde se sente aprisionado, onde se sente abandonado, onde está perdido, onde passa “fome” e é carente.
Podemos, em muitos momentos, sentirmo-nos impotentes perante tantas situações, podemos até dizer, e correctamente, que não podemos salvar todos, que não podemos dar a todos, que não podemos estender a mão a todos. É verdade, não podemos salvar todos, mas também não é esse o objectivo, pois, na verdade, a única coisa que nos é pedida é que nos salvemos a nós mesmos do materialismo, da ganância, da necessidade de poder exacerbado e irreal. É dessa forma que poderemos ajudar quem à nossa volta precisa de auxílio, com aquilo que é o mais importante, com Amor. Amor colocado em qualquer acto, seja uma dádiva duma moeda, de uma quantia qualquer para uma instituição, seja um prato de comida, uma simples palavra, um olhar ou um sorriso, torna esse acto absolutamente divino e especial e, acredite-se, é capaz de fazer um milagre. Ainda assim, se nada mais for possível de ser feito, uma oração, uma simples prece, sentida, de coração, sem floreados nem palavras caras, com todo o Amor, já é muito mais do que muitos de nós fazem em cada dia. Talvez, se cada um de nós pensasse um pouco mais em tudo isto, esta época teria um novo significado e, tenho a certeza, com a atitude consciente e forte de cada um, a pouco e pouco, muito iria mudar.