Mil eus

Dentro de mim, tal como em qualquer outra pessoa, existem alguns eus diferentes.

Um eu doce, ainda criança, que absorve o que me rodeia com curiosidade de quem está a ver o mundo pela primeira vez.

Um eu materno, aquele que transforma as incertezas em certezas e que, mesmo sem conhecer o caminho certo, dá a mão para que o filho caminhe seguro em direção a um futuro incerto.

Um eu carente, cheio de necessidades que se esconde do mundo e que deixa cair lágrimas de exaustão ao fim do dia e que precisa de todos os abraços e carinhos que não lhe dão.

Um eu consumista e social, que procura o prazer nas coisas mundanas e se deixa levar pelos encantos das futilidades numa inconsciência banal.

Um eu casmurro, que ampara todos os outros eus numa teimosia consistente e pensada.

Um eu assertivo e capaz de chegar ao cerne das questões mais difíceis, laminando implacavelmente as inconsistências que aqui e ali surgem.

Poderia continuar por tempo indeterminado e encontraria mais eus e eus, pessoas que, em momentos diferentes, assumem a liderança da minha personalidade e que me ajustam e me tornam resiliente ou inconformada.

Contudo, existem mais eus. Os outros eus, os que surgem dos outros.

Para cada pessoa que me conhece ou que se cruza comigo na rua, sou um eu diferente. Sou um eu diferente para o meu pai, para a minha mãe, para cada um dos meus filhos, para o meu marido, para cada um dos meus amigos, familiares, conhecidos. Eu, uma imensidão de eus.

Cada pessoa terá de mim uma concepção diferente, assim como haverá a quem agrado ou a quem desagrado totalmente.

Eu sou dois eus diferentes para cada pessoa: o eu que vem de dentro e o eu visto pelos olho do outro.

E, por ser tantos eus, acabo por não conhecer nem metade. Alguns vou descobrindo e outros serão meus desconhecidos para sempre.

Sendo eu tão diferente de mim mesma, de acordo com as circunstâncias, devo de aceitar que o outro seja assim também e que ninguém neste mundo é apenas um eu.

Dentro de uma pessoa podem coexistir eus lindos e eus totalmente abomináveis.

A maneira que eu olho para o outro, também o transforma num eu personalizado por mim.

Esta multiplicidade de eus, de cada um de nós, é  que nos torna únicos e ao mesmo tempo iguais.

Gostar ou não de alguém depende da percepção que temos do outro e de como os eus dessa pessoa se manifestam para nós.

Somos melhores ou piores, de acordo com as características dos eus mais fortes dentro de nós. É, por isso, essencial conhecer o máximo de eus possíveis e tentar matar os piores. Não será fácil, mas é assim que nos tornamos melhores pessoas, por muito grande que seja o paradoxo.

Existem mais eus numa pessoa que receitas de bacalhau no mundo.

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