Recentemente, num qualquer concurso literário em Portugal, cujo objecto eram livros de poesia inéditos editados no ano transacto, promovido por uma Câmara Municipal do sul do país, aconteceu que, mencionando o regulamento do referido concurso literário que não seriam admitidas a concurso antologias de poesia, o livro vencedor escolhido pelo júri foi uma antologia de poesia de um autor conhecido e jubilado do meio poético.
Um resultado peculiar que o júri considerou dever caracterizar mencionando que premiou não a antologia (nome inclusivamente presente na capa do referido livro), mas um livro inédito, com cerca de trinta páginas, inserido no final de um livro com cerca de seiscentas páginas. Caricato foi a referida câmara municipal, que promoveu o concurso com recurso a dinheiros públicos, oficializou-o em edital, não questionar a flagrante violação do regulamento, e o claro desrespeito pelos restantes concorrentes, munícipes e cidadãos, aceitando o resultado, divulgando-o formalmente com toda a pompa e circunstância, inclusivamente nos órgãos de comunicação social.
Deixo ao critério do leitor formar uma opinião sobre este tema, clarificando que as provas deste enredo estão ao alcance de uma breve pesquisa na internet, dado que tanto o regulamento como o resultado, e até o nome do livro estão disponíveis online.
Contudo, o tema fulcral deste artigo não é este concurso em particular. Nem sequer é o manifesto desprezo do júri do concurso e da Câmara Municipal pelos autores que concorreram, na expectativa de um resultado honesto, concreto, não fraudulento e aferível. É toda a teia de influências, protecionismo de classe e de estatuto, e o completo desprezo pelo talento verdadeiro por parte de todas as oligarquias de todos os meios artísticos (e não só) em Portugal.
Esclarecendo este meio em particular, verifica-se a existência de dois tipos de concursos literários: os nacionais ou internacionais que têm prémios apetecíveis (e com o prémio, o prestígio), e os restantes, mais locais, cujos prémios e prestígio não são tão apetecíveis. Enquanto o júri dos primeiros é escolhido a partir de um grupo restrito de professores universitários, escritores ditos consagrados e editados pelas melhores editoras (e aqui a chancela tem um papel fortíssimo, sendo que para a poesia, em Portugal, praticamente só existe uma relevante. Veja-se a listagem de livros finalistas de um prémio importante de poesia em Portugal. Em cinco livros, três são da referida editora), e intelectuais do meio, o júri dos segundos divide-se entre personalidades locais, professores locais, e funcionários das câmaras.
Logicamente e sendo a escolha do júri dos grandes concursos/prémios entre os entendidos do meio, um grupo pequeno onde todos se conhecem, é naturalíssimo existir um vício criado entre o objecto (o livro) e o nome de quem o escreve. Pode-se considerar inevitável que tal exista, e sim, é verdade, mas o dever de tal júri devia ser, além de premiar, o procurar as novas gerações de escritores, premiar a genialidade, o tema, o conteúdo, e a forma de o transmitir, esse sim os derradeiros objectivos de qualquer livro.
O drama associado a este vício e ao sistema que insistem em manter (premiar os amigos, os intelectuais da linha política/ intelectual mais em voga) e aparentemente invisível destes júris, é que da inexistência de abertura da literatura e dos conteúdos da mesma a um público mais vasto resultará inevitavelmente a intensificação do abismo que existe entre os potenciais leitores e os livros, afastando os leitores para conteúdos piores, menos críticos, menos intelectualmente desafiadores.
Ora, analisando a maioria dos regulamentos de prémios literários, é quase invariável os mesmos mencionarem a pretensão de promover a escrita, a criação, e os hábitos de leitura, o que, invariavelmente acaba aquém de ser alcançado, por incapacidade de se relacionar a pretensão do concurso/prémio com a abertura necessária para se promover conteúdos/ talentos/ autores que rasguem com a filosofia/ ideologia/ ciência vigente, negando a diversidade. Este conservadorismo intelectual transmite à sociedade e aos órgãos de gestão (neste caso o governo) uma imagem de supremacia de alguns poucos, normalmente os que recebem os fundos/ prémios, e simultaneamente uma ideia de que o talento em Portugal é raro, o que não podia estar mais longe da verdade.
Infelizmente não só esta arrogância, quiçá prepotência intelectual, se reflecte a este nível, como se reflecte na maioria das relações entre indivíduos do meio.
Apercebi-me ao longo do percurso que para muitos que escrevem, o acto de escrever, de se exporem de uma forma segura, sem juízos de valor ou de qualquer outro género, é quase uma forma de sobrevivência psicológica. Permite escapar de um mundo agressivo, onde o objectivo, o status social, económico, etc., é O tema actual. Assim, o acto de escrever é uma forma de libertação do eu sobre outras formas que não as socialmente entendidas. E por isso, qualquer tipo de necessidade formal nesta área assume uma forma criminosa, ao impiedosamente assassinar liberdades, esperanças, pensamentos, e fundamentalmente vozes.
E esta palavra – voz – assume uma importância incrível. Quantos não possuem nas suas vidas mundanas e sociais qualquer tipo de voz, excepto aquela que decidem colocar sobre a forma escrita, e eventualmente, com uma coragem excepcional, publicar sob o olhar do mundo?
A quem cabe assim a tarefa de irrevogavelmente, sem qualquer pejo, e a maioria das vezes qualificações, condenar, criticar, suprimir, ou mesmo alvitrar sobre a qualidade das vozes dos outros? E porque se reprimem outros meios linguísticos, outros géneros literários, outras vozes, sob a égide da formalidade intelectual, quando a suprema forma de demonstração de intelectualidade artística é a aceitação de tudo como uma forma válida, e possível futura ideal forma de expressão? Quem foram os que mudaram as artes ao longo dos séculos? Os que mudaram conjuntamente com os que aceitaram a necessidade de mudança, ou os que se conformaram?
E quem e quais as qualificações necessárias para alvitrar, comentar ou qualificar o que é poesia, quando há pessoas que escrevem, outros que escrevem poesia, outros ainda que SÃO pura poesia e outros que conseguem conjugar ambas as coisas?
Fica a mensagem.