Era impossível.
Até que deixou de ser.
Durante muitos anos ela tinha forrado o coração de páginas de livros, construindo uma biblioteca de palavras e memórias. Imaginava-o a passear tranquilo enquanto passava os dedos pela tinta, a colocar os óculos para ler melhor, a folhear histórias que ele não tinha tido tempo de conhecer.
Mas um dia ela acordou com o ruído metálico de uma chave que tentava abrir a porta com urgência. A madrugada era jovem. Levantou-se da cama com um salto. Ouvia a fechadura a refilar, forçada, irritada. A sentir-se irritada também, nem se lembrou de perguntar quem era, só abriu a porta. Mesmo na escuridão, reconheceu-o. Mesmo depois de tantos anos, reconheceu-o.
É impossível, pensou, tenho os olhos ainda presos ao sono.
“A chave não abria”, queixou-se a voz dele. E era mesmo a voz que ela lembrava ser a dele.
Ele entrou-lhe em casa sem pedir licença, adivinhando que não precisava. Uma casa que ele nunca conhecera – e, contudo, estava ali. Ao passar por ela, tocou-lhe no cabelo ao de leve. Ela observou-o a caminhar pela única assoalhada da casa e a absorver tudo à volta: a cama desfeita, uma caneca suja no chão, o rádio ligado a passar baixinho uma música dos anos 80, as estantes, um cadeirão e uma pequena mesa. Ele parava de vez em quando, pegava nos livros e tentava perceber os títulos, mesmo estando demasiado escuro para ler. O andar dele – também era mesmo como ela se lembrava.
O silêncio pesava. O silêncio dela era um abismo, era incredulidade e medo e felicidade. Viu a cara dele por primeira vez: a luz da lua que entrava pela janela mostrava-lhe o impossível. Ali estava tudo o que nunca tinha chegado a ser e que ela tivera de deixar morrer; ali estavam todas as oportunidades do mundo. Um caos inominável de emoções deixou-a sem força e sem ar. Tinham passado tantos, tantos anos, mas ele continuava igual. Perguntou-se se ela também era uma criança outra vez – se alguma vez tinha deixado de ser. Ele soube-se observado e sorriu para ela; deixou o livro em cima do cadeirão e abriu os braços. Ela correu para abraçá-lo. De olhos fechados, para não chorar. Sentiu o cheiro dele. O conforto. As mãos a tocarem-lhe no cabelo. De repente percebeu que se tinha esquecido de muitas coisas sobre ele, mas não da voz, não do andar, não dos abraços. Tinha a garganta fechada com uma tristeza gigante e abraçou-o com mais força para respirar melhor.
“Não pode ser” disse ela, a voz contra o peito dele. “Eu toquei nas tuas cinzas.”
Só que nada era impossível.