Tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater o coração
fique por nós o teu inda bater.
(Vasco Graça Moura)
Vivemos tempos muito estranhos e chafurdados de desmaranhos. Vivemos como podemos e, às vezes, sem sabermos bem como nos provermos. E como firmes nos sustemos perante estes agudos ermos cuja morte corporal nos detém aos desamanhos, indefesos e nos extremos…
Mesmo a morte, o que de mais certo todos temos e teremos, é atirada para o leito atordoado tanto do incompossível como do incompreensível da (des)Humanidade. A morte por si só já é algo custoso e pesaroso. Já não bastava a infelicidade da mesma para ser, nestas vagas, atribulada de indignidade.
Ora veja-se, a não exemplo de exemplos, o que este vírus covidenho – para já invencível – tem descomposto fartamente entre a razoabilidade e a espiritualidade no ato e no facto de se lidar (ou não) com os corpos fúnebres – não são restos nem lixo! – que vão aumentando impressionantemente no mundo e se vão amontoando:
- Familiares que não se puderam despedir dos seus defuntos;
- Funerais com número muito limitado de pessoas, enquanto outras aglomerações – cumprindo as regras – já foram/são possíveis;
- Desfoque de outros doentes de risco e, por vezes, em perigo de vida, relegados para segundo plano. De que adianta terem camas hospitalares reservadas para o efeito, se não têm continuamente assegurados os necessários cuidados e cuidadores de saúde disponíveis?;
- Morte, a nível mundial, de milhares de profissionais de Saúde na frente de combate à covid – vai-se ter em conta isto, até pelo reforço das condições imprescindíveis e que estão já a colabar, ou vai continuar-se a ignorar?;
- Agências funerárias que foram/vão colocando os cadáveres em sacos plástico, mesmo não tendo sido por covid;
- Corpos que esperam semanas, em alguns países, para serem enterrados!, já para não referir o concentrado cheiro putrefativo nas morgues e “armazéns” onde vão sendo depositados à espera;
- As valas comuns, em alguns países, fazendo lembrar infortunadamente a época do Holocausto…;
- O absurdo de 88% de idosos que morreram com covid, há uns meses na Suécia, sem cuidados hospitalares mas reduzidos à morfina induzida!;
- Etc., etc..
O Governo decretou, para hoje, o dia nacional de luto pelas vítimas da pandemia. Alarguemos este dó, sem nó, a todos os que faleceram (este ano), mesmo os que não foram o que eu chamaria de «coron’alvos». Porque aquando da comemoração do Dia dos Fiéis Defuntos – de todos eles, intemporalmente – ou, abreviado, o Dia dos Finados. Ou seja, não que tivessem assim o seu último fim – para os crentes –, porém, a esta vida terrena, já não mais confinados.
Curiosamente, há uma semana precisamente morria a tia Guida, minha e a de largas dezenas de primos que somos. E morria daquilo que mais medo, porventura – eu e tantos como eu –, possamos ter nesta vida: o maldito cancro, sendo que metastizado ainda mais susodito! A propósito do cancro – e solidário e orante por todos os doentes oncológicos (que não só os meus familiares e amigos) – considero inconcebível que quase um milhar destes utentes estejam sem tratamentos, exames e cirurgias à vista, sem remarcação de datas adiadas devido à pandemia. O cancro não pode esperar!!! Ainda por cima a covid tem um impacto maior nestes doentes, que estão entre os grupos de risco acrescido para a infeção!…
Nada é por acaso e, no sétimo dia da partida celestial desta minha tia – que, serenamente, aguardava já a chegada da morte física –, celebrou-se eclesialmente o Dia de Todos-os-Santos. Não só os que cometeram proezas heroicas de vida, de ensino ou de martírio e que foram ora beatificados ora canonizados nos altares da Fé. Contudo, e de igual modo – e esses são muitos mais! –, todos os que se sacrificam com benignidade nos lugares dificultados do dia-a-dia. Com percuciente fragilidade, sem desfazer a sua indulgente simplicidade. Tanta boa gente que o próximo sente e a ele se doa desmedidamente. Esse são os santos do hoje e do amanhã que, mesmo sem serem evocados nas ladainhas litúrgicas, não deixam de ter nome. Uma denominação que nos é querida e em nós fruída. Entoemos-lhes um hino! Pois, não deixam de habitar nem coabitar na imensidão dos corações humanos e divino.
A tia Guida – e tantas finas flores humanas, que não só Margaridas – foi, é e sempre será uma dessas mulheres santificadas e abençoadas. Mesmo sem precisarem – ela e outras incomensuráveis fragrâncias de tantos seres feitos jardins –, nos religiosos cultos, de serem elevadas. E como pude senti-lo, sobretudo na minha idade infantojuvenil, em tantos Natais indefetíveis, agradecíveis e aprazíveis. Sempre connosco e para nós, «Rubins» – em que, à mesa, 50 (ou mais) nos sentava –, a fim de cearmos e solenizarmos a magia familiar da Natividade. E tão ambrosíacos banquetes nos preparava!
Porque esta santidade é para todos, não só para alguns: importa salientar! E já que não é extraordinária, mas acessível. Está em cada passo, deste nosso perene caminhar.
À minha tia Guida, demais tios, avós, padrinho e primos falecidos, entre outros queridos amigos fiéis defuntos, dedico ad aeternum a seguinte quadra – singela e, com verdade, tão bela! – que tão bem se lhes aplica e que li algures (inscrita numa lápide irlandesa e cujo autor desconheço):
A morte deixa um sofrimento
que ninguém pode curar.
O amor deixa uma lembrança
que ninguém pode roubar.
Concluo com o refrão musical de Sara Tavares:
“Só Deus sabe o que virá, só Deus sabe o que será”. Mesmo quando a noite vem. Mesmo quando a noite, escura e gélida, se faz na perda dum qualquer familiar ou amigo. Não percamos a Luz nem nos ofusquemos nas luzes exteriores. Essas – apenas essas – ora se fundem e confundem, ora se intermitem e, por vezes, nos iludem. Não tenhamos medo da Vida nem da Morte, pois esta “não é um tormento: é o fim de um tormento.”
(Caio Salústio)