E o melhor do Lisbon & Estoril Film Festival continua! Desta vez com a revisitação à obra-prima Arizona Dream, do cineasta sérvio Emir Kusturica e protagonizada por Johnny Depp.
Nos inícios dos anos 90, Johnny Depp começara a impor-se em Hollywood, ao ser um nome de algum modo cada vez mais comentado no cinema americano, em muito graças ao seu desempenho como Eduardo Mãos de Tesoura no filme do mesmo nome realizado por Tim Burton. Contudo, o que muitos talvez não saibam é que entre esse papel e o de Benny & Joon (estreado em 1993, pelo qual foi nomeado ao Globo de Ouro de Melhor Ator em Comédia ou Musical e onde desempenhava um fanático admirador de Buster Keaton) existiu o papel de Axel, um jovem de 22 anos, que vivia em Nova Iorque, e que era fascinado pelo mundo dos peixes e dos esquimós. Pouco aplaudido nesse projeto, Depp estaria ainda sem o saber, a participar numa das obras de culto do cinema dessa década, que inclusive, foi a primeira longa-metragem do realizador sérvio Emir Kusturica em terras do tio Sam.
Na verdade, Axel mantém-se uma referência para os sonhadores, e mantém-se bastante contemporâneo do nosso tempo. É que Axel é um jovem do estado do Arizona que deixou para trás a sua família na tentativa de conquistar o grande sonho americano, na cidade que nunca dorme. Quando o seu primo Paul (Vincent Gallo), um aspirante a ator o visita, tentará convence-lo a deixar para trás os seus dias de catalogador de peixes e visitar o seu tio Leo (o comediante Jerry Lewis), que está prestes a se casar com uma imigrante polaca muito mais nova. Axel arrisca perder a sua vida independente e é levado pelo primo para ajudar o seu tio nos seus negócios: a venda de carros. Entretanto, a narrativa floresce quando a personagem conhece Elaine (a vencedora do Óscar Faye Dunaway), viúva de um dono de minas e a sua enteada Grace (Lily Taylor), duas mulheres um quanto neuróticas, depressivas e fora do vulgar que farão Axel amadurecer enquanto homem e descobrir o sentido do amor – que quase de certeza tem a forma de um avião e é melhor descrito na Papua-Nova Guiné.
Arizona Dream é realmente uma pérola da cinematografia de Emir Kusturica que eloquentemente mistura elementos de realismo (não serão as cenas iniciais do esquimó uma referência ao ‘falso’ documentário Nanuk, o Esquimó de Robert J. Flaherty?) a elementos mais surreais e fantásticos a lembrar os primeiros truques de magia e de montagem do francês George Méliès (com influências do seu conterrâneo, o realizador jugoslavo Dusan Makavejev). Além do mais, vale-se dos momentos hilariantes de comédia que trespassam claramente uma leitura e análise irónica daquilo que o cineasta entende sobre a América, sendo exatamente um deles, os instantes nos quais Axel treina a sua dicção, em como ser cordial com um dado cliente.
Em Arizona Dream as barreiras entre o sonho e o ideal do mesmo (ou seja, o sonhar acordado) são desfeitas em relação a esse país, que nos dias de hoje terá de decidir qual o seu próximo e mais ambicioso presidente. Apesar de uma certa ambiguidade, presente logo no começo do filme, onde não sabemos bem onde estamos, fica claro no decorrer da projeção, que tudo o que vemos em Arizona Dream é uma ilusão. Primeiro, temos uma representação do sonho da América e não uma América realista. Segundo, temos um país falsamente unido como nação, porque como o próprio Axel reconhece a sua vinda para a cidade justifica-se pelo facto de ele conhecer toda a gente, mas ninguém o reconhecer. Como a grande maioria dos jovens dos anos 90, Axel tenta encontrar o seu lugar no mundo, embora o seu espírito rebelde e lunático, nos faça questionar se o mundo será lugar para ele.
Outra personagem que surge nesse panorama é Paul, obcecado por alguns dos mais importantes filmes norte-americanos dos anos 70. Desde logo, porque na sua vida profere algumas das míticas frases da sétima arte, onde percebemos como a cultura popular tende cada vez mais a moldar personalidades e a estar entranhada em personagens. Com efeito, existem alusões a sequências de O Padrinho – Parte II, de Francis Ford Coppola que remete para as relações de irmãos – como naquela em que Michael Corleone (Al Pacino) acusa Fredo Corleone (John Cazale) de traição-, ou cenas de O Touro Enraivecido, de Martin Scorsese-, em que a personagem de Robert DeNiro discute com a personagem de Joe Pesci sobre um possível romance extra-conjugal deste com a mulher do primeiro. Uma das particularidades é que em ambos os casos temos personagens italo-americanas representadas por atores italo-americanos, em filmes de cineastas também eles descendentes de italianos, o que imediatamente aponta à importância da Europa na modelagem cinematográfica norte-americana.
Claro que o espírito americano não se perde, sobretudo quando Paul representa, num concurso de talentos, a inesquecível cena de North by Northwest, de Alfred Hitchcock em que um avião persegue a personagem de Cary Grant. Aí a montagem contrapõe a representação com a re-representação, em que deduzimos seriamente que Arizona Dream é uma autêntica e global encenação do american dream dentro dos parâmetros da fábrica de sonhos que é Hollywood. Por muito curioso e ‘futurista’ que possa parecer, numa das cenas em que conversa com raparigas da plateia, Paul relembra os grandes atores americanos como Pacino, DeNiro até que refere alguém chamada Johnny Depp, que, entretanto já assumiu um verdadeiro estatuto de celebridade.
A ‘não vulgaridade’ de Arizona Dream encontra-se igualmente nas interpretações que de forma fluida tornam a trama numa história de relações humanas, de homens e de mulheres que fogem às convenções e aos estereótipos sociais e que, por isso são incompreendidos e julgados, como muito acontece no caso dos artistas. Isto porque Emir Kusturica teve dificuldades em estrear a sua obra no mercado americano, mesmo tendo vencido o prémio especial do júri no Festival de Berlim.
Arizona Dream é uma comédia dramática (ou romântica) em que o seu cineasta apresenta-nos uma visão bastante peculiar e excêntrica do mundo. O filme, em toda a sua explosão de cor e contrastes sobre as ruínas da amargura dos jovens da geração X, faz-nos mergulhar num dos hinos do cinema indie dos anos 90. Ao mesmo tempo comprova como a maioria das narrativas, a partir desse período, deixariam de seguir uma matriz convencionalmente clássica (de início, meio e fim institucionalizados) para dar uma construção de tempo muito mais mental e surrealista. E não é que um ano depois de Arizona Dream, Pulp Fiction surpreenderia tudo e todos? Enfim, valeu a pena descobrir que os nossos sonhos são como Arizona Dream recheados de ilusões, mentiras, fantasias, mágoas, suicídios e peixes-, como se de respirar cinema fosse a nossa única maneira de viver.
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