Quando me pediram para escrever sobre um Alentejo escondido que todos devessem conhecer, não consegui começar por uma paisagem, um local, tive de olhar primeiro para dentro, esse retalho sem fim. Hoje quero falar-vos de um livro muito especial para a cultura alentejana…
Nas tardes quentes do Alentejo, sob a pequena sombra de um copo de vinho tinto em que nos abrigamos, muitas são as histórias que ouvimos. Muito é o conhecimento que nos transmitem com um sorriso nos lábios – histórias de gente de outrora que viveu por estas bandas, histórias de um Portugal marcado nas rugas desses mestres, ou simplesmente contos e lendas perpetuados no tempo muito graças ao nosso desejo de que fossem mesmo verdade, se é que não são.
Nestes tempos de confinamento, a que nos obriga este COVID “patego”, tenho-me lembrado da falta que fazem essas pérolas e a forma como se podem tornar um consolo e voltarem a despertar dentro do nosso imaginário, mas onde ir busca-las?
Felizmente, existe um livro lindo (em grafismo e conteúdo) que é muito especial para todos os que vivem neste sítio, no longínquo Este. Esse livro repousa na minha sala, como em tantas outras, com a pompa que um tomo da sua importância requer e nunca é má altura para o folhear.
O Cancioneiro Tradicional de Serpa é, como o nome indica, um compêndio de músicas, canções tradicionais destas paragens, mas não só. Através destas músicas e letras, para além do acervo extraordinário de lendas tradicionais, “adizeres” e excelentes ilustrações, é uma aglomeração muito completa da nossa inestimável cultura. Muitas vezes me socorro dele, não só como músico, mas também como alentejano que sempre dá valor a uma boa história contada tão bem como a sua autora o fez.
A obra intemporal foi produzida por Maria Rita Ortigão Pinto Cortez, uma serpense, que começou a escrever as músicas – a melodia e as diferentes letras – que fazem parte da nossa cultura comum, num trabalho que durou anos e contou com a ajuda de tantas e tantas pessoas da comunidade que partilharam esta sabedoria, tendo a primeira edição sido publicada em 1987 e mais recentemente em 2016 uma segunda edição, devo dizer: linda. Este livro é, obviamente, importante para os serpenses, mas eu acho que é uma excelente porta para o Alentejo à disposição de todos!
Aquilo que nos apaixona, para além do conhecimento ser fundamental para nos enraizar na nossa comunidade e nos levantar um sentimento de pertença, são as belíssimas ilustrações que a autora fez num traço jovial mas muito certeiro, retratando momentos do quotidiano, preciosidades arquitectónicas da cidade e das vilas do concelho, festividades e paisagem.
Para além das “modas” deixa-nos também um grande compêndio de canções eclesiásticas (a religião sempre manteve um papel de extrema relevância nestas terras, um amparo em tempos mais frágeis e uma celebração das graças), de contos e lendas, de regionalismos e um quase “manual” de utilização destes conhecimentos na prática, ou seja na sua adequação à vida alentejana ao contextualizar tudo.
Ainda me lembro de aprender estas músicas, em pequeno, e ainda as canto: ainda vivem em mim, tal como as histórias que são muitas vezes repetidas sob a sombra dos copos de tinto ou de avós para netos, de amigos para amigos, pais para filhos. E a forma como quem vem de longe se surpreende e extasia ao ver como complexa é a nossa cultura, como é pintada de tantas cores e saberes!
Maravilhosa é a forma como a cultura, nos dias de hoje, se manteve tão presente, protegida e sabiamente passada por todos… embora a mim não me espante, pois esta maneira de ser sempre viveu dentro de mim: nas canções, nos impropérios que digo quando me magoo, nos provérbios que partilho, nas anedotas que conto, na forma como olho para o tempo, para as aldeias e para a forma de ser das pessoas. Involuntariamente, bebi-as e é muito provável que passe estas gotas a mais pessoas e assim, tal como vivem em mim, viverão também noutras.
É este o primeiro Alentejo guardado que vos quero mostrar, pois nestes tempos aquilo que precisamos, entre outras coisas, é de raízes e talvez, ao lerem estas linhas, encontrem um pouco de um Portugal que vive em cada um de nós, um Portugal dentro de nós onde podemos caminhar livremente, peço-vos portanto que me deixem acompanhar-vos, partilhando para vocês uma das lendas que nos são queridas:
No Alentejo, uma lenda de terror envolve um “medo”. “Medo” é a coisa que nos causa essa sensação, ou seja Cérebro (o cão Infernal) seria por exemplo um “medo” e chamar-se-ia “o medo do Inferno”. Estes “medos” míticos ou mais reais habitam em certas partes do Alentejo. A própria autora do Cancioneiro, numa nota relativa a isto nos explica: “Contos de fantasmas e de medos, criados pela imaginação popular, (…)” fruto de coisas inexplicáveis, paisagens esquisitas e incomuns ou da vontade de criar fantasia no mundo que circunda.
Esta história é a história de um medo muito importante em Serpa – “a lenda da Cobra Marreira”. Por respeito ao próprio trabalho revelado no cancioneiro, vou aqui transcrevê-lo na exata perfeição:
As Quintas da Marreira e do Fidalgo ficam situadas à saída de Serpa, uma de cada lado da estrada de Beja. Junto ao muro da Marreira, e também debaixo d’uma figueira da Quinta do Fidalgo, há quem afirme ter visto uma cobra muito grande com cabeça de mulher, de longos cabelos louros e lindos olhos negros. É uma fidalga encantada chamada Ana, e aparecem em manhãs de São João e de Quinta-feira da Ascensão, acompanhada de um maravilhoso tesouro de ouro e prata. Mas nem toda a gente é digna de a ver.
Quem a quiser desencantar, terá de se sujeitar às seguintes três provas, sem mostrar medo:
Primeiro tem de “bradar” (chamar) por “Ana!”, que aparecerá em forma de touro, investindo e dando grandes urros. Se resistir a esta prova, o touro vai-se embora e voltará em forma de cão preto. Se a pessoa vencer o medo, virá então a cobra, que se lhe enroscará à cintura e lhe dará um beijo. Se se assustar, será morto por ela. Se, pelo contrário, mostrar coragem, quebrar-se-á o encanto, e o salvador receberá como recompensa o tesouro da cobra!
– in Cancioneiro de Serpa, páginas 334-335
Posso dizer-vos que por aqui temos o hábito de, pela noite, gritar por Ana à noite, quando estamos no campo… o que já resultou em valentes “cagaços”. Boas memórias! Então é este o Alentejo que vos deixo: pesquisem o Cancioneiro e mergulhem nesta cultura soberba que vos vai aquecer esses espíritos, certamente, e verão nascer mais uma razão para a maravilha nestes tempos difíceis.
Assim é, no Alentejo.