Numa altura em que tanto se fala sobre inclusão, será que esta se fica somente pelas intenções?
Como será o dia a dia de uma pessoa cujas características tão peculiares a tornam única num mundo repleto de “fotocópias”?
Conheço a Inês Oliveira há 18 anos. Sabendo de todas as dificuldades que enfrenta diariamente, pensei ser útil partilhar convosco esta realidade, em tom de entrevista, numa tentativa de consciencialização e de verdadeira inclusão.
Lídia: Inês, fala-me um pouco de ti, da(s) tua(s) peculiaridade(s) e de quando esta se começou a manifestar.
Inês: Antes de mais, gostaria de agradecer esta oportunidade, pois falar sobre estes assuntos tem que deixar de ser um tabu. Há que abrir horizontes. Há pessoas como eu, há piores, e há também quem esteja melhor. Precisa-se urgentemente de saber aceitar e saber conviver.
Em segundo lugar, e até para contextualizar, eu passo a explicar a minha “peculiaridade”: tenho o Síndrome de Tourette. Para quem não sabe o que é, esta síndrome caracteriza-se por espasmos involuntários dos membros quer superiores, quer inferiores e ainda por sons emitidos ou palavras proferidas também de forma involuntária.
As pessoas normalmente associam esta síndrome aos palavrões, no meu caso é num pouco diferenciado, o que é pena, pois em certas alturas daria imenso jeito, já que bater é crime (risos).
No que diz respeito à altura em que se começou a manifestar, eu tenho 37 anos e não me lembro de mim sem isto, portanto desde muito pequena, desde o tempo da pré-escola.
Paralelamente a isto, nasci enrolada no cordão umbilical e com um dos lados da cabeça amassado, o que pode ter causado lesões cerebrais.
Lídia: Quais os maiores desafios que tens que enfrentar no teu dia-a-dia?
Inês: A lista é grande, infelizmente. A vida social, desde não conseguir andar de transportes públicos sem ser olhada como se fosse uma extraterrestre, estar num sítio público como um restaurante ou uma loja e das duas uma, ou olham-me com olhar de pena ou com aquele olhar do género “a sério? O que é “isto?”.
Passando ainda pelas coisas práticas do dia-a-dia como conseguir abrir uma embalagem sem derramar o seu conteúdo, seja este sólido ou líquido.
Caminhar sem cair também é um desafio, pois se tiver um espasmo num pé ou numa perna é tombo pela certa.
Lídia: Alguma vez te viste impedida de fazer algo (estudar, trabalhar, namorar) por causa disso?
Inês: Arranjar emprego é muito difícil, não só pelos outros, porque se “assustam” comigo, portanto algo ligado ao contacto com o público seria impensável. Por outro lado, eu própria não conseguiria aguentar uma jornada de oito horas de trabalho. Um part-time poderia parecer uma boa solução, porém, em que ramo? Restauração está fora de hipótese, partiria a louça toda, literalmente.
Informática, já foi, em tempos, uma boa hipótese, quando os computadores eram grandes e resistentes, agora são pequenos e frágeis e poderiam não resistir a uma investida minha, ainda que inadvertidamente, como, aliás, já aconteceu.
O ideal seria algo em back-office ou até em teletrabalho, de modo que pudesse gerir quer o tempo, quer o meu estado físico, o qual muda consoante estou mais ou menos ansiosa.
Algumas coisas que tenho vindo a fazer é trabalhar em eventos como “bengaleiro”, por exemplo, ou ainda como animadora, já que acarreta gesticular bastante e posso sempre disfarçar deixando no ar se o problema é meu ou se estou a encarnar a personagem. Outra hipótese é a organização de eventos, em back-office, desde que sejam eventos informais. O senão disto é que é um trabalho sazonal.
No que diz respeito aos estudos, tenho um mestrado em Turismo e Desenvolvimento de Negócios, mas foi um percurso difícil. Um dos anos mais difíceis na escola foi o 11° ano. Uma professora minha só deu conta da minha dificuldade no início do 3° período. Ainda tive direito a uns testes adaptados, porém, esta iniciativa não foi bem vista pelos restantes alunos, chegando até a sofrer de bullying por causa disso. O 12° ano foi no ensino recorrente porque era por módulos e era mais fácil de gerir.
Em relação a namoros, a experiência é pouca e, de uma maneira geral, não tem sido muito positiva. Podemos dividir as pessoas em três categorias: os aproveitadores, que brincam, da pior maneira, com a situação, as pessoas ditas “normais” que não têm a coragem para assumir um relacionamento devido à situação, e há lugar ainda para os pervertidos que olham para os espasmos como um fetiche.
Lídia: Sei que já passaste por situações deveras constrangedoras, muito por causa da ignorância das pessoas. Gostarias de partilhar alguma em especial?
Inês: Há, de facto, um conjunto de situações que me marcaram bastante, nomeadamente ter sido convidada a sair de certos lugares como lojas e restaurantes, já fui acusada de consumir drogas e o meu comportamento ser fruto da falta das mesmas. Como a minha pele é de tom bastante moreno, já senti um misto de discriminação e racismo. Já fui filmada para ser motivo de chacota.
E depois temos o reverso da medalha, ou seja, aquelas pessoas que desvalorizam completamente a situação afirmando que eu e pessoas como eu podem fazer tudo de igual modo como as pessoas ditas “normais” o que, na verdade, não é nem de longe, nem de perto assim, pois mesmo comparando duas pessoas “normais” elas não vão ter as mesmas capacidades, quer físicas, quer intelectuais.
Lídia: Tens algum benefício por parte do estado ou de alguma outra entidade?
Inês: Não. Do estado só tenho um Atestado de Incapacidade Alta que proporciona algumas vantagens como passar à frente nas filas, algumas entradas grátis como o oceanário, por exemplo.
Lídia: Quais as mudanças que gostarias de ver implementadas no nosso país no sentido de te sentires mais incluída?
Inês: Gostaria que houvesse mais informação e desmistificação, pois as pessoas normalmente olham de forma esquisita para tudo o que é diferente e desconhecido.
Gostaria também que, em lugares públicos, houvesse lugares recatados para pessoas como eu, onde se pudessem sentir mais à vontade sem incomodar e sem serem incomodadas.
E gostaria ainda que houvesse a criação de mais postos de trabalho direccionados para este tipo de casos. Já se vão vendo até porque a própria legislação mudou, porém, são ainda insuficientes.
Lídia: E por último, que conselho(s) darias a alguém que se encontra na mesma situação que tu?
Inês: Os meus conselhos são:
Façam aquilo que gostam, encontrem algo que vos dê conforto e agarrem-se a isso;
Não tenham vergonha de ser como são, não sofram em silêncio, não se calem!
Não somos nós que estamos errados, é o resto do mundo!
Inês, antes de terminar, gostaria de agradecer não só a tua disponibilidade mas também, e acima de tudo, a tua coragem para partilhar este tema, na esperança de que possa contribuir para uma mudança, e rápida, de atitude.
Muitas Felicidades, Inês!
Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do antigo acordo ortográfico