Olha o avião

Sentados, frente a frente, comiam em profundo silêncio. Ela, de cabelo curto e quase branco e ele careca, sem vestígios do que tinha existido antes. Ela levou o garfo à boca e a comida entrou, calmamente. Ele olhava para o prato e partia, em pedaços pequenos, o que lá estava. Era frango grelhado. Não podia fazer mal. Ela largou os talheres e pegou no copo. A mão tremeu. Levou o copo à boca e bebeu. O líquido balançava no recipiente, mas não caiu onde não devia. Continuava o silêncio.

Não se olhavam, mas continuavam a tarefa a que se tinham proposto. Novamente o copo. Agora tremeu mais um pouco. O líquido estava mais fundo e mais difícil de alcançar. Ela olhou para ele. Ele continuava de cabeça baixa, a cortar a comida em pedaços mínimos. Parecia uma brincadeira. Cortava um pedaço e depois voltava a cortá-lo até ficar reduzido a uma farripa. Fazia montinhos que colocava ao lado do arroz, em forma de pudim. Castelinhos. Levantou a cabeça.

Já tinha marcas da passagem do tempo, vincadas e certamente dolorosas. Ela perguntou-lhe se estava bom. Ele respondeu umas palavras infantis, num som estranho e retardado. Mãe e filho, numa união que nunca se tinha quebrado, ligação que se estreitou e continuou. Ela cuidava dela, daquele que tinha ficado menino e nunca de lá sairia.

Abriu a boca e o garfo com a comida, minúscula, como se fosse um bebé, entrava em forma de avião (olha o avião a entrar) e mastigava com calma. Uma eternidade. A mãe despejava o sumo no copo e dizia-lhe para beber. Já não lho dava à boca. A mão tremia demasiado. Bebeu um pouco do sumo e saboreava-o com calma. Fez uns sons curiosos com a boca que demonstravam o seu agrado. A mãe continuava a dar-lhe uma garfada. Ele virou a cara. Não queria.

Ela continuou a comer e acabou o que estava no prato. Ele olhava para os montinhos que não se desfaziam nem desapareciam. Talvez estivesse a viver umas aventuras onde as rainhas e os reis dançavam naqueles castelos imaginados. Com uma paciência infinita ela insistia e contava-lhe pequenos segredos, que só ele conseguia ouvir. Abria a boca a ficava à espera que a comida aterrasse naquele hangar que se dispunha a recebê-la.

Finalmente, o almoço terminou. Na mesa ficaram os despojos do mesmo: pratos e talheres. Os bagos de arroz, espalhados aleatoriamente, não contavam. Ele olhou para eles e começou a juntá-los. Enrolava-os, fazia carreirinhos e deslizava os dedos por aquelas encruzilhadas mágicas.

A mãe olhava atenta e embevecida. Estava velha, mas sabia que o seu menino nunca a iria deixar. Um dia ela teria de ir, mas ainda faltava muito. Agora vivia o momento.  O menino era seu, o bebé que nunca cresceu e que ficara sempre ao seu cuidado. Estava velha e ele também, mas nunca a abandonaria e isso dava-lhe motivação para continuar a viver.

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