Haverá razões para 12 Homens em Fúria?

Antes de a Internet democratizar o acesso à cultura, uma enciclopédia de cinema – um CD-ROM comprado com dinheiro oferecido num aniversário e de umas quantas mesadas – foi, durante anos, a fonte onde saciei a curiosidade cinematográfica: trailers, fotografias, fichas técnicas e prémios referentes a cada obra eram acompanhados por textos de Leonard Maltin, Roger Ebert ou Pauline Kael, críticos conhecidos do meio.
Mais tarde, com a chegada da TV por cabo, tive no Canal Hollywood o grande fornecedor de obras que os canais abertos não passavam. Sempre que decidia ver um filme no Hollywood, fazia-o com a lição estudada pois não queria dar o tempo por perdido. Foi por essa altura que vi no Hollywood 12 Homens em Fúria (12 Angry Men, 1957), filme realizado por Sidney Lumet com Henry Fonda à frente de um grande elenco (Lee J. Cobb, Martin Balsam ou Jack Warden para citar alguns).
A história decorre integralmente numa sala de jurados, durante a deliberação da culpabilidade ou inocência de um réu. O veredicto, fácil à partida, encontra na primeira votação a oposição de um único homem – o jurado número 8 – suportando-se na ideia de que, enquanto houver uma dúvida razoável, a condenação não deverá sair da sala. Segundo a Wikipédia, «a evidência por de trás de uma “dúvida razoável” é o nível (…) requerido para validar uma condenação (…)», sendo este nível tal que «a acusação deve estar confirmada ao ponto de não provocar uma “dúvida razoável” numa “mente razoável”».
O brilhantismo do filme é tal que, se eu o explorasse em todas as suas dimensões, encandearia uma futura visualização (a quem não o viu). No entanto, à parte das questões técnicas como a riqueza do diálogo (o filme é uma verdadeira peça de teatro), a força das interpretações ou a subtileza da realização, interessa reflectir sobre a aplicação da justiça.
Num mundo em que a construção de uma condenação exclusivamente “beyond a reasonable doubt” rareia quando um boato traz consigo uma sentença imediata na praça pública, ver 12 Homens em Fúria é, mais do que um exercício de cidadania, uma demonstração de decência (um exagero consciente).
Não sabemos da culpabilidade ou inocência do réu durante a deliberação, tal como não sabemos os nomes dos jurados: nesta história, a personagem principal é a Justiça. A sua aplicação evidencia a fragilidade do “fazer prova” quando colamos o termo “razoável”, quer à dúvida, quer à mente de quem decide. Não confundirá Henry Fonda, o jurado número 8 e herói deste filme, uma “dúvida razoável” com uma “réstia de dúvida”? É que há alturas em que, em defesa da razoabilidade da dúvida, ele parece exigir a eliminação total da mesma para validar a condenação.
Numa votação por maioria simples, o réu teria sido condenado à primeira. O direito de veto ganha aqui uma importância preponderante, não como garantia de justiça, mas como forma de obrigar a um debate do qual poderão emergir novos factos, reflexões, dúvidas…
Custar-me-ia ser jurado num julgamento de um crime de sangue pois pendo para o equívoco em que me parece por vezes incorrer o jurado número 8: o de que uma “dúvida razoável” significa o mesmo que a “mínima dúvida”. Sei que não seria razoável e que só “venderia” o meu voto a troco da anulação total da dúvida de partida com a qual nós, jurados, iniciaríamos a deliberação. Poucos julgamentos chegariam ao fim, o que seria pouco sensato pois “fazer prova” não significa, infelizmente, eliminar a dúvida: “fazer prova” traduz-se tão-somente em conseguir que a nossa dúvida se liberte da sua razoabilidade.
Este magnífico ensaio sobre a aplicação da justiça é uma análise da natureza humana, dos preconceitos, das pessoas e da lógica que as move, do poder da argumentação e da interacção humana… enfim, da justiça da qual todos sentimos ter algo a dizer, ainda que nem sempre do jeito mais esclarecido, mas é para isso que crescemos. E é para nos ajudar a crescer que vale a pena ver 12 Homens em Fúria.
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