Fortaleza-Humana

Nestes dias, de maior recolhimento, tem havido tempo para muito: para o tele-trabalho, para as horas de trânsito recuperadas em proveito próprio, num sono mais prolongado ou num fim de tarde prazeroso, no convívio mais intenso com aqueles com quem escolhemos viver, e mesmo para um maior contacto, ainda que por via das tecnologias várias, com os amigos.

Para além da gravidade e preocupação que nos enche os dias, temos vindo a descobrir uma nova forma de viver, mais lenta, mais saboreada, mais dada às emoções, libertos da rigidez de um dia funcional, automático e corriqueiramente pejado de obrigações.

As mudanças geram sempre as reacções mais díspares: há os que entram em pânico, não sabendo como reagir, os que temem o futuro, os que fazem da ignorância um finca-pé para manter adiável o urgentemente inadiável, há os adeptos darwinistas, que sabem que só os que se adaptam sobreviverão, e há os que parecem sempre saber como viver.

Tenho uma profunda admiração pelas pessoas que, não só sabem como viver, com todo o auto controlo e sabedoria que isso preconiza, mas que conseguem, no caos do seu interior, transmitir aos outros a serenidade. Conheci, ao longo dos tempos, pessoas assim. Pessoas que, em plena crise, se mantêm tão firmes de si, tão fortaleza, que os outros, antecipando vê-los devastados, dão por eles estáveis, ainda que interiormente possam sentir-se sem chão.

Assim era o meu avô. No dia em que a minha avó faleceu, no hospital, eu não estava em casa quando tal foi anunciado. Quando cheguei e meti a chave à porta, estranhei o silêncio, havia sempre um rádio ou uma televisão a mitigar a mudez. Ele estava no sofá da sala, sozinho, aparentemente calmo, num choro mudo sem descontrolo, sem raiva, sem palavras arrancadas à dor. Parecia ter aceite o inevitável, e soube-o depois, que na altura tinha 16 anos e muita coisa não me foi dita, que era o esperado. E ele, parecia quase passivo, acomodado com a situação. Só quem não tivesse conhecido aquele amor, duma grandeza que não encontro par, poderia pensar tal coisa. Simplesmente não podia mudar a situação, e tendo sobrevivo, talvez sentisse que era sua obrigação não sujeitar terceiros (entre eles eu, miúda ainda) a mais uma dor, a do visível sofrimento desesperado do conjuge sobrevivo

A irmã dele faleceu aos 84 anos, de cancro. Só a vi chorar uma vez desde o diagnóstico. Quando iniciou um tratamento novo, que ela descreveu como já tendo salvo muita gente – ter-lhe-ão dito – não sei se se queria convencer a si mesma, ou se animar os demais. Não sei se ambos o faziam conscientemente, se tinham noção deste poder, ou se não reconheciam sequer outra forma válida de ser. Se eles já sofriam, se o sofrimento alheio não lhes traria qualquer vantagem ou desenvolvimento, então para quê alastrar a dor?

Todavia, não é apenas este tipo de fortaleza que conheço.

Todos conhecemos pessoas que são dadas ao extremo e dramático queixume, motivado pela unha lascada ou qualquer outro contratempo menor, e pessoas que, tendo uma vida complexa, sofrida, fazem questão de não maçar os outros com os seus contratempos, e que preferem encher os ouvidos de terceiros de coisas agradáveis, que para dureza já lhes basta a própria vida.

Contudo, há aqueles – e são estes os que me deixam absolutamente sem entendimento – que mal conhecemos, mas que numa primeira impressão (e não há uma segunda hipótese para uma primeira impressão) nos transmitem uma serenidade imediata. Não sei de que forma lemos isso, nós comuns mortais, que antevemos no outro uma capacidade surpreendente de resiliência, uma impossibilidade de desestabilização, como se guardassem em si toda a capacidade resolutiva e nada os conseguisse perturbar. E esses seres, que se denunciam num olhar habitualmente intenso, de pupila firme mas extremamente doce, conseguem acalmar, como por artes de magia, de aura, alma ou o que seja, o coração mais desafortunado. Esta gente, dotada duma calmaria de alma, embora habitualmente muito dada a iniciativas várias e ao serviço do outro, parece conter em si a capacidade de sossegar os ânimos, repor a esperança, renovar a fé num dia melhor.

Agora que escrevo, relembro dois ou três olhares destes, associados a pessoas que parecem encerrar em si próprias uma sabedoria sem limites, associada a uma evidente humildade. Têm, quase sempre, uma vontade imperiosa de ajudar, mas nunca se impõem, aguardam antes o pedido, expresso ou subliminar, fazendo-o muitas vezes de forma enigmática, rematando com 3 palavras que contêm a solução do mundo, e que frequentemente só entendemos muito depois.

Agora que penso bem, há crianças que me transmitem essa mesma sensação, ainda que de uma forma muito mais pueril e simples, assente na clareza de decisão de que os seus cérebros são dotados, sem os comedimentos do socialmente esperado. E recordo uma velha, muito velha, que se referiu a uma criança, que se explicava na sua linguagem clara mas de conteúdo superior, que ele já teria sido velho, pela sabedoria que em si encerrava, sem historia de vida que o justificasse.

E nos dias de agruras, em que o pior da humanidade nos entra pela vida adentro, encontro um imenso conforto em ser contemporânea e poder usufruir do convívio com estes seres, que me renovam a esperança e que me devolvem a capacidade de acreditar, qualquer que seja a hecatombe que nos assombra os dias.

“A serenidade é apenas a casca da árvore da sabedoria, mas, não obstante, serve para esta perseverar.”

Confúcio

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